sábado, 11 de setembro de 2010

Valpaços, no tempo da Mala Posta



A Casa da posta em Valpaços

Retiram-se da tradição oral das pessoas mais antigas de Valpaços, vagas referências à «taberna», nome porque era antigamente conhecida a estalagem ou casa da mala posta, situada no antigo caminho entre Valpaços e Mirandela, onde fazia escala a diligência, que assegurava o transporte do correio, e de raros passageiros, nesta região. Estas memórias, que têm admiravelmente resistido à voragem dos tempos, parecem-me fiáveis e podem ser corroboradas por estudos científicos que já foram publicados sobre a rede de estradas portuguesas antes da motorização e, em particular, sobre o serviço da Mala Posta em Portugal, como adiante se poderá constatar.


Enquadramento histórico

Convém recordar que até à segunda metade do século XVIII, quando se procurou estabelecer em Portugal os serviços de transporte de correio da Mala Posta, as escassas vias e as más condições das que existiam obrigavam a que as pessoas continuassem a deslocar-se se a pé ou com o recurso a animais, como vinham fazendo durante a Idade Média, destacando-se neste desgastante labor a secular figura do almocreve ou do recoveiro. As calçadas romanas, originalmente criadas para a deslocação dos exércitos imperiais, mas em grande parte arruinadas por falta de manutenção e confinadas a espaços muito reduzidos, continuavam, ainda assim, a servir como a única alternativa ao movimento da população e à manutenção da vida económica de muitas regiões do interior. Nessa época o transporte de correio fazia-se a pé, de sacola às costas, no dorso de lentos muares, ou, mais raramente a cavalo. Assim funcionava no reino o serviço do Correio Mor, um ofício postal criado por Carta Régia de D. Manuel I de 6 de Novembro de 1520 que confiava a gestão desse serviço a Luís Homem. Este serviço, então caro e ineficiente, de que apenas os mais abastados tiraram algum proveito, esteve sujeito a nomeação régia, até que Filipe II o vendeu a Luís Gomes da Mata Coronel, pela quantia de 70.000 cruzados, dando início à primeira dinastia postal do mundo e cuja família manteve o seu monopólio durante quase dois séculos, sem grandes benefícios para a maioria da população. [1] Este estado de coisas parece ter começado a melhorar a partir de 1780, no reinado de D. Maria I, a qual determinou que fosse realizado um conjunto de obras públicas (construção de estradas e melhoria de outras, construção de pontes…), mas apenas em três áreas do país: Lisboa, Coimbra e região do Douro. [2] Mais tarde, por decreto de 1797 a Coroa estatizou a lucrativa actividade postal do correio mor explorada pela família Mata, que passou a ser explorada directamente pela Corte. Entretanto, já em 1788, José Diogo de Mascarenhas Neto havia publicado o Método para Construir as Estradas em Portugal. Este José Mascarenhas Neto, também autor das Instruções para o estabelecimento das Diligências entre Lisboa e Coimbra e, uma vez nomeado para o cargo de Superintendente Geral dos Correios e Postas do Reino, continuou a dar especial importância à estrada Lisboa – Coimbra, «na qual se viria a introduzir o serviço da mala-posta que, além do correio, fazia também o transporte de passageiros.» [4] Mas com o tempo o serviço da mala-posta foi-se alargando para outras regiões.

Efectivamente, segundo Elsa Pacheco, no início do século XIX, de acordo com o plano desenvolvido por Mascarenhas Neto, «os eixos centrados em Lisboa [tinham] por destino, além da Aldeia Galega (na saída para Espanha), Valença, Faro e Chaves (passando por Viseu), e do Porto [irradiavam] vias para Caminha, Chaves e Bragança» Segundo a mesma autora, «a ligação entre o Porto e Caminha [fazia-se] por Vila do Conde, Barcelos e Ponte de Lima; entre o Porto e Chaves, por Guimarães e Barroso e, entre o Porto e Bragança, por Penafiel, Amarante, Vila Real e Mirandela». [5]

Ora, o que se diz sobre a célebre «taberna» parece-me poder inserir-se geográfica e cronologicamente neste quadro das vias servidas pela mala-posta no trajecto Porto - Bragança, sendo no entanto de observar, como o faz Elsa Pacheco, que «o território a norte do Douro, talvez pela distância que o [separava] da capital do reino e pelas dificuldades de atravessamento do rio Douro, [apresentava] um serviço da responsabilidade dos Correios Assistentes ou Comarcas”. Pretendo com isto dizer, na senda desta observação, que talvez a comarca de Valpaços, instituída como se sabe a 31 de Dezembro de 1853, se visse, a partir desta data na obrigação de assegurar esse serviço dentro da área da sua jurisdição. Não obstante a real evidência de que em muitas regiões os caminhos-de-ferro tiveram como consequência o declínio da mala-posta, tal consequência não me parece ter sido tão evidente na comarca de Valpaços, apesar dos esforços dispendidos, e bem sucedidos aliás, pelo nosso já biografado Júlio do Carvalhal, enquanto deputado às Cortes pelo círculo da mesma sede concelhia, pela construção de uma linha ferroviária entre o Porto e a Régua. Atendendo à posição periférica desta região relativamente à expansão da rede ferroviária que foi promovida por Fontes Pereira de Melo, é de crer que os serviços da mala-posta ainda tenha prevalecido por aqui por várias décadas até à era da motorização rodoviária, com as dificuldades e os sacrifícios que a sua manutenção impunha. Será, portanto de confirmar a tradição a respeito da mala-posta de Valpaços, cuja referência unanimemente enraizada na vaga memória das mais antigas gerações valpacenses é a célebre Taberna. Se as pobres estradas da comarca de Valpaços foram, antes da motorização subsidiárias da rede de navegação fluvial, também o passaram a ser relativamente à rede ferroviária no contexto da mesma ligação Porto-Bragança. A prova de que a "Diligência de Valpaços" ainda se encontrava em serviço em 1913 - ainda que não sirva para corroborar os atributos tradicionalmente atribuídos à Taberna - surge numa aguarela de Alberto de Souza publicada na edição desse ano da Ilustração Portuguesa e reproduzida por José António Soares da Silva numa das suas recentes publicações. [6]

A “taberna” da mala-posta

Situa-se a cerca de 1,5 Km a sudeste do limite da rua do Tramagal e início da N203, por um caminho que daqui se dirige para nascente. As coordenadas geográficas do local, obtidas no Google Earth, são as seguintes: 41º 34´.17” de Latitude N / 7º 17`.84” de Longitude W. Como se documenta na foto inicial, o que resta do primitivo edifício encontra-se na bifurcação de duas vias que se estendem nos sentidos poente e Sul. Junto do local existe um cruzeiro. A primeira impressão que se fica acerca do edifício pode parecer desanimadora!

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O imóvel encontra-se bastante descaracterizado, face ao que seria de esperar de uma Casa de Posta, havendo nele sinais de grandes remodelações recentes coexistentes com outros claros sinais de abandono e ruína. Contudo, existem alguns pormenores na estrutura actual da Taberna que nos permitem ainda obter uma vaga ideia do seu aspecto original. Um desses pormenores sugere nitidamente que o edifício se alongava uns bons pares de metros no sentido de nascente, pois uma boa parte da parcela arruinada diminui nessa direcção. Trata-se da parede Norte que creio ter sido a fachada do edifício, onde se denota nitidamente uma porta que foi preenchida com pedra miúda e à esquerda da qual existem duas janelas, uma delas estruturalmente preservada e outra incompleta. É improvável, atendendo ao alongamento primitivo da construção a que fiz referência, que o telhado de duas águas que o actual proprietário construiu sobre uma parte do que restou do edifício tivesse, originalmente, essa estrutura e orientação. Em todo o caso, a antiga Taberna seria bastante diferente dos edifícios construídos de acordo com as normas definidas por José Mascarenhas Neto para as estalagens e Casas de Posta segundo as quais as construções deviam apresentar uma planta em forma de “U”, compreendendo três compartimentos distintos (refeitório, dormitório e cavalariças) e um pátio central, como as que foram construídas em várias regiões do país. Parece-me de supor que a Taberna se trataria de uma estalagem modesta, diferente das existiam em zonas mais movimentadas e, portanto, talvez respeitando os requisitos menos exigentes do correio local ou da comarca, como já admiti, e não as rigorosas directrizes que foram impostas pela Superintendência Geral dos Correios e Postas do Reino. O estilo singelo desta Casa da Posta, não desvaloriza, porém, a importância que a memória colectiva dos valpacenses lhe atribui para um passado que é sempre difícil, sem provas documentais, definir os respectivos limites cronológicos. Na 2ª metade do século XIX,o local devia ter, grosso modo, até prova em contrário, o aspecto que sugiro na minha reconstituição desta edição do “Re(en)cantos da Memória”.

A Taberna, Casa da Mala Posta na 2ª metade do século XIX (reconstituição)
desenho e guache de Leonel Salvado


A Diligência da Valpaços – aguarela de Alberto de Souza,  Ilustração Portuguesa, 1913  
in José António Soares da Silva, O Partido Progressista de Valpaços, 2006


Referências

[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Correio-mor
[2] http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/143.pdf
[3] http://www.fpc.pt/FPCWeb/museu/displayconteudo.do2?numero=18849
[4] http://ler.letras.up.pt, Id
[5] Id, ibid
[6] SILVA, António Soares da, O Partido Progressista de Valpaços (1860-1910), C. M. de Valpaços, 2006, p.37

Agradecimento: Como vem sendo costume, cumpre-me agradecer ao Sr. Manuel Medeiros por ter sido graças a ele, e na sua companhia, que me foi possível ir ao encontro de mais um fragmento da “Valpaços desaparecida”. O meu Bem-haja também ao Sr. José Lourenço de Andrade pelo contagiante entusiasmo que manifestou relativamente a este (e a outros!) temas do inesquecível património histórico de Valpaços a que os poderes instituídos não têm dado a devida importância.

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