Actualizado em 8 e Fevereiro de 2012
O Colmeal, uma "aldeia fantasma", foto de João Paulo Sousa in http://www.panorâmio.com
As aldeias abandonadas são uma realidade que vem suscitando, nos últimos anos, diversas reacções de pesar dos portugueses, sobretudo à escala regional, umas vezes movidos pelo natural apego ao seu património material e cultural, outras por incontidos sentimentos de nostalgia, outras vezes até por um inconsolável sentimento de injustiça. Na maioria dos casos, como sucedeu com a aldeia do Cachão, no concelho de Valpaços, essa realidade parece ter sido fruto da interioridade e dos surtos de emigração que se intensificaram no país a partir dos anos setenta. Noutros casos, porém, como os que sucederam nos tempos em que a ruralidade era encarada como umas das virtudes da Nação, encorajada pelo regime e acatada com maior ou menor resignação pelos povos, as causas revestiram contornos de efectiva injustiça e de consequências dramáticas que deixaram marcas nas populações durante várias gerações. Um desses casos, talvez o mais paradigmático, foi o caso da “tragédia do Colmeal”, uma aldeia do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, cujos moradores foram obrigados a abandoná-la por forças da GNR, no ano de 1957, em consequência de uma acção judicial que ainda hoje, passados 53 anos, gera desabafos de clara indignação em algumas vítimas e descendentes e confundem os juristas que procuram, à luz do sistema jurídico da época, indagar da legitimidade dessa acção. Esta questão, que desde há duas décadas tem preocupado o poder municipal, tem sido levada aos meios de comunicação e hoje mesmo foi tema de destaque no programa televisivo “Tardes da Júlia”, apresentado por Júlia Pinheiro no canal TVI. Enfim, face à documentação disponível, este lamentável acontecimento afigura-se-nos como uma tragédia que pode ser (re)apresentada em três actos.
A TRAGÉDIA DO COLMEAL EM TRÊS ACTOS
Colmeal, outrora designada de Colmeal das Donas é uma aldeia abandonada da freguesia que ainda lhe deve o nome, situada no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo. De origens remotas (surge pela primeira vez mencionada em documentos papais e leoneses do século XII) tem uma história curiosa que atingiu o dramatismo a partir da década de 40 do século passado, começando por fazer correr rios de tinta na imprensa regional e nacional nos anos que se seguiram à revolução dos cravos e tendo vindo, nestes últimos anos, a ser cada vez mais mediatizada e a constituir motivo de fascínio por parte das novas gerações que a têm feito passar nos meios de comunicação social nas mais variadas formas, que vão desde as interessantes versões romanceadas de Felícia Cabrita até às reportagens de Sandra Invêncio e de Gabriela Marujo, as souberam explorar, literária e jornalisticamente, as memórias e lamentações dos seus antigos habitantes e expõem toda a verdade nua e crua da história desta «aldeia fantasma».
Acto Primeiro – Lendas e Narrativas
António Bordalo, 72 anos esgalhados na terra, tenta esquivar-se a uma velha maleita que se lhe encostou à alma. As pernas escanzeladas descobrem a força e a agilidade do antigo pastor e cortam o silvedo como lanças. A espreitar do vale, o campanário da igreja paroquial do Colmeal dá sainete à serra. António estaca, no olhar o desconcerto, na boca mil maldições. Deus noutro tempo não sabia o que fazia. A porta do templo saiu dos gonzos, o telhado ruiu e o sino, que tinha escapado às invasões francesas, voou com alguma dança macabra. O velho procurava em volta vestígios do cemitério que as silvas escondem, entra na igreja, tropeça. As pedras de granito das sepulturas foram levantadas, crânios estilhaçados e ossos cortam-lhe os passos. Abre a porta da sacristia que dá para o cemitério, arbustos encorpados como gente, onde os bichos daninhos se acoitam, impedem a passagem, e ele quebra cego na dor: «Bandidos, ladrões, que aqui tenho meus avós, minha mãe, meu sangue».
António atravessa a aldeia fantasma à procura de velhas lembranças. O telhado da sua antiga casa tombou e à porta uma mata densa impede-lhe a entrada. No solar de Pedro Álvares Cabral, os frescos nas paredes despedaçadas, e a pedra de armas ainda resistem ao logro do tempo. As vacas são agora as senhoras da casa fidalga, nos antigos salões rompem com os velhos moldes feudais aliviando aliviando a tripa e protegem-se do sol implacável de Julho.
Sentado na escadaria, o velho solta a memória, alegrias e tristezas, lendas e medos de gente da serra, habitantes de uma aldeia com passado que teve o nome assente nos cronicões. Ali tinham nascido e morrido seus antepassados, avós lusos e iberos. O pai era lavrador e tinha de seu uma junta de bois e muitas colmeias. Viviam apenas da lavoura e quando não havia agricultura iam à jeira para terras de famílias abastadas. A água não faltava nas hortas e pomares, e as frutas e as hortaliças do Colmeal eram muito cobiçadas. Mas quando se aproximava Maio, antes das colheitas, não sobrava trigo para trocar por sardinha ou rabos de bacalhau, e os mais pobres não tinham outro passadio que não fosse pão com azedas que cresciam nas paredes.
Ia o século a dar os primeiros acordes e António, mal completara 7 anos, começou a galgar a serra com o rebanho do feitor. José Feliciano era bom homem, e ainda ia longe o tempo dos desacertos. Calçou-o, foram os primeiros sapatos que conheceu, com tamancos de pau ferrados. Dava-lhe a merenda e ao fim do ano oferecia-lhe um animal. António não pedia mais à sorte, que isso era quase pecado, e aos poucos conseguia uma cabrada. O rapaz andava com o rebanho à folha pela serra, sem quebranto. Um pau de choupo servia de arma contra os lobos e para vergar o fole a quem não viesse por bem. Pelava-se para abater o lobo ou a raposa e mostrava-se depois de povo em povo, a fazer gala da presa e a arrecadar ovos e farinha pelo serviço prestado aos galinheiros. Mas quando se aproximava Junho arrepelava-se se tinha que passar pela Cova da Moura, uma sepultura do tempo da moirama, encerrada numa fraga. Mantinham velhos pastores, que passavam dias e noites a cismar naqueles serros que arranhavam o céu, que a moura saía do seu encanto pela festa de S. João, e à noitinha estendia a sua roupa à orvalhada para não ganhar traça. As mulheres, a quem a natureza tinha concedido a fraqueza, quando vinham da ceifa não olhavam para trás para não caírem no feitiço. António com coisas dessa natureza nunca mofou, e era certo que depois da meia-noite baixava as trancas para se defender do andaço dos lobisomens que batiam às aldrabas a ver se pegava, e deitavam coices às portas.
Ao domingo abandonavam os sachos e as gadanhas, era dia de folgança. De manhã Padre Seixas, mais conhecido por Cieiro, mercê da comparação que o povo fazia entre ele e o vento nordeste, violento e frio, celebrava; ainda a missa era cantada. A igreja estava apinhada de povo, muito afeiçoado às coisas de Deus. O santo predilecto era o Pai eterno, que tinha uma bola na mão, representação do mundo. E eles andavam sempre muito alinhados com as leis divinas para não desfeitarem o santo, porque sabiam que se o globo caísse se afundava o mundo.
Mal a noite se punha, os rapazes faziam a ronda pelo povo, tocando concertina. As moças casadoiras juntavam-se à volta da fogueira e o baile corria até de madrugada. Não havia bicho-careta dos arredores que faltasse à festa, vinham de machimbo ou a butes no engodo das raparigas que tinham fama de muito galantes. Felisbela já andava embeiçada por um rapaz, um ás da harmónica, e nunca faltava à dança. Só tinha três fardas para pôr no corpo, mas chegava para agradar. O pai tinha-a debaixo de olho com medo que o vento a emprenhasse e punha-se debaixo do lampião para não perder qualquer atrevimento do noivo. Era leve como as penas e alegrava a roda com a sua graça. O lenço caía e mostrava o cabelo entrançado, grosso e brilhante, a querer desprender-se do carrapito. Os moços de fora levavam rebuçados que ela não comia temendo alguma miscelânea que a metesse doida. Era amiga da pândega mas sem dar muito paleio para não cair nas bocas do mundo e casar com honra e crédito. As romãzeiras engalanavam a aldeia, e os mais velhos abancavam em pedras e compunham a festa com relatos de coisas antigas e os enigmas das origens. Colmeal pertencera ao reino de Leão mas com as rapsódias da história passou para a coroa portuguesa. As demandas com os espanhóis despovoaram os lugares da serra e D. Afonso V deu-lhe carta de Couto em 1540, era senhor desse povo João Gouveia. Com a morte do fidalgo andou aquela terra de senhor para senhor até acabar nas mãos de Pedro Álvares Cabral. Felisbela que não conhecia letra nem livro, sabia que a sua aldeia existia desde o início do mundo e, como toda a gente, em tudo punha milagres. Por isso pelava-se para ouvir Amadeu, o poeta da terra, que em tempos ia a Belmonte, por soutos e moitas, altos e baixos, entregar aos cabrais um braço de cebolas e umas tantas galinhas pelo foro do povo.
Amadeu mexia em verso no passado e trapaceava as crónicas.
Junto à fogueira com a garrafa de vinho à perna, o poeta contava à sua maneira o que já ouvira dizer a seus antepassados sobre a origem da aldeia. Era uma vez um pastor deste lugar que entrou em desassossego com um sonho que o perseguia. Alguém lhe dizia que fosse a Belém procurar o seu bem, e de tanto malucar com este mistério, um dia foi. Ao chegar à beira de uma fonte, encontrou um pastor negro que lhe deu a chave da mensagem. E ele partiu às pressas, para junto do seu gado que andava no pasto, e debaixo de umas lajes encontrou uma cabra e um chibo de ouro. Por ser homem de honra não se alapardou com o tesouro e foi ao palácio entregá-lo ao rei. O monarca, satisfeito com a oferenda, disse ao pastor que lhe satisfazia um desejo. E o homem pediu-lhe umas terras para amanhar, e pastos para as suas cabras, e assim nasceu o Colmeal. Felisbela quando mirava o solar dos Cabrais não duvidava da lenda na pedra de armas gravada, uma cabra e um chibo.
Por Felícia Cabrita, Colmeal, Ecos da Marofa, edição de 10-05-2007
Imagens: http://www.cm-fcr.pt
Acto Segundo – A verdade nua e crua
Eram mais ou menos dez horas da manhã, quando os habitantes do Colmeal, concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, foram surpreendidos por uma força da GNR que os expulsou de suas casas e lhes confiscou os seus pertences. Estava-se a 8 Julho de 1957. Quarenta anos volvidos no meio de todo o abandono a que ficou votado, e do elevado estado de degradação dos edifícios, o Colmeal serve de campo de pastagem dos animais daquele que se diz dono da aldeia. Mas há quem não esqueça esta injustiça. «Andaram naquilo até à noite», lembra Albino Carvalho. Na altura, tinha pouco mais de trinta anos e a «vida arranjada». A tarefa era executada por «dois homens que traziam as coisas de casa para a rua», e, «como a gente era muita», foi necessário um dia inteiro. De certa forma, os habitantes do Colmeal sabiam que «algo de mal» lhes iria acontecer. Mas nunca pensaram numa sentença tão dura.
A história deste povo é de origem antiquíssima. O documento mais antigo que se conhece data do ano de 1183, quando D. Fernando II (Rei de Leão) se encontrava em Ciudad Rodrigo e doou o Colmeal, conjuntamente com outras povoações, à Ordem de São Julião do Pereiro. Uma doação confirmada pelo Papa Lúcio II em Abril do mesmo ano. Esta ordem teve a sua sede no lugar do Pereiro, onde ainda hoje se podem ver os vestígios perto de Cinco Vilas que faz fronteira com o Colmeal. Após o Tratado de Alcanices, os bens desta Ordem passam para a Ordem de Alcântara, em 1297, e as terras de Riba Côa são integradas na Coroa Portuguesa. As disputas com os espanhóis despovoaram os lugares da serra, e D. Afonso V deu-lhe carta de Couto - terra que não pagava impostos por pertencer a um nobre, com o nome de Colmeal das Donas em 1540. Era senhorio deste povo João Gouveia.
Com a morte deste fidalgo o Colmeal das Donas passa a pertencer a Vasco Fernandes de Gouveia (1476), e, com a morte deste, a Fernão Álvares Cabral e D. Isabel de Gouveia. Pais de Pedro Álvares Cabral.
Mudanças sucessivas levaram a que a burguesia endinheirada, saída da República, se fosse apoderando dos domínios da nobreza. Os Condes de Belmonte não escaparam e venderam o foro do Colmeal das Donas. Os novos proprietários mantinham direitos que remontavam ao tempo das sesmarias, ao mesmo tempo que lavravam à pressa escrituras e delimitavam terrenos. As gentes do Colmeal por sua vez, habituadas à servidão, continuavam a pagar foro. Desta feita, aos feitores dos novos senhorios. «Aquilo não se fazia»
O triste fado da aldeia foi ditado no início da década de 40 com a chegada de um novo rendeiro, que subia as rendas a seu bel-prazer. Valores que atingiram níveis quase impossíveis de suportar. Durante anos os habitantes "mataram-se" a trabalhar para pagar as rendas. Albino Carvalho recorda esses tempos sem saudade, mas lá vai dizendo que, embora as terras «fossem más», «uns lavravam, outros tinham cabras, outros tinham vacas», e a agricultura lá ia dando para viver e pagar aos rendeiros.
Revoltados com a situação, os habitantes do Colmeal recusaram-se a pagar e, como resultado, tiveram de travar uma longa batalha jurídica que de nada lhes valeu. O processo começou com a acção de despejo para o caseiro da casa dos Cabrais, acusado de deixar de pagar renda ao senhorio, mas anos depois os aldeões passaram à categoria de subarrendatários do mesmo e tratados de igual modo. Por altura das colheitas dois oficiais da justiça chegaram com a sentença final. Uma acção de despejo. Estava-se no dia 8 de Julho de 1957.
A GNR apresentou-se fortemente armada para o acto de despejo. Enquanto os aldeões tentavam a sua sorte nos montes sobranceiros à aldeia, as mulheres e as crianças refugiavam-se na igreja. Nada impediu as autoridades de rebentarem com as portas das casas e levarem os poucos haveres desta gente simples.
«Andavam em demanda há muito tempo», na opinião de Albino Carvalho. Designadamente, de Rosa Quirino Cunha e Silva que queria ser dona de todo o Colmeal. Tanto que o seu advogado, Manuel Vilhena, conseguiu "ajeitar" as leis e transformou a aldeia - anterior à nacionalidade portuguesa -, numa quinta.
A única coisa que Albino e a sua família conseguiram salvar foi «algumas roupas». Como não podia regressar ao Colmeal, a terra que o viu nascer, Albino teve de recomeçar do zero noutro lado. A escolha recaiu sobre Bizarril, a terra natal da sua esposa, e uma das anexas que serviu de refúgio às gentes da aldeia despojada. «Arrendámos esta casita», conta Albino, onde ainda hoje vivem os dois, o sustento era garantido pela agricultura. A profissão que sempre conheceram. «Tempos difíceis». As dificuldades arranjaram-lhe uma doença a que ele chama «velhice», e que não o deixa deslocar-se com a mesma energia de antes. Tem apenas 72 anos, mas anda encostado a um pau como se a vida o tivesse deixado. Com lágrimas nos olhos, lembra o filho que deixou lá enterrado. «Disseram-me que o cemitério está num estado lastimável, que arrancaram as pedras», conta. Assim como lamenta que o actual proprietário «tenha vendido todos os santos da igreja, segundo me disseram, a um senhor de Trancoso».
Maria Matilde não nasceu naquela aldeia, mas foi lá crismada, e lembra-se bem da festa de S.Miguel. «Era uma grande festa. Toda a gente das aldeias vizinhas se deslocava ao Colmeal». Maria Matilde não fugiu à regra «e quase todos os anos ia à festa». Esta mulher natural de Bizarril não está de acordo com o que aconteceu aos habitantes da aldeia vizinha. «Aquilo não se fazia», afirma em tom revoltado. «Ainda me lembro que se via um guarda com uma metralhadora, além no cimo do monte». E reforça, «aquilo não se fazia»... «O Colmeal não é a quinta dada aos Quirinos».
Jerónimo Leitão proclama-se legítimo dono do Colmeal. «O Dr.Vilhena e o Dr.Crespo vieram ter comigo, e perguntaram-me se queria comprar aquela aldeia abandonada», recorda. Respondeu afirmativamente mas com uma condição: a compra ser feita pelos três. Assim foi. Os donos do Colmeal passavam a ser Manuel Vilhena, Miguel Crespo e Jerónimo Leitão. Entretanto, Vilhena vendeu a sua parte a este último, que passou a ser dono de cerca de mil hectares. Depois do 25 de Abril vendeu «400 hectares à Portucel», e arrendou, «por 25 anos, as partes mais altas da serra [Marofa] à Soporcel».
«Fizemos tudo para a recuperar», garante Jerónimo Leitão, «mas já naquela altura estava degradada». O espaço foi então aproveitado para uma exploração agrícola, a ser aumentada futuramente. «Vou proceder à recuperação de lameiros para as vacas», adianta. Quanto à venda do recheio da igreja, argumenta que «comprei, por isso é meu. Tenho toda a legitimidade de fazer o que achar melhor».
Quem não se conforma é Aires Cruz, descendente e criado na aldeia do Colmeal, e um dos expulsos, que afirma que «está provado que o Colmeal é uma aldeia e não uma quinta». «A aldeia tem uma Igreja Matriz [em 1320/21, no arrolamento que D. Dinis mandou elaborar estava mencionada a Igreja do Colmeal], uma casa da Junta da Paróquia, um Paçal com adro, um cemitério e ruas públicas», isto, garante, «provado e documentado». «Uma quinta não pode ter Paçal, Junta da Paróquia, nem cemitério público, onde os enterramentos datam de meados do século XVII». Resumindo, «existe uma aldeia, que é a aldeia do Colmeal, e cujas confrontações estão bem definidas, porque são de todos conhecidas». No entanto, prossegue, «existe uma quinta, não se sabe onde, mas que não pode ser a quinta que a justiça deu de facto aos Quirinos». Essa é a grande questão para Aires Cruz: «O Colmeal não é a quinta que foi dada aos Quirinos».
Este interesse desmesurado, em sua opinião, tinha a ver com a abundância de água. Um autêntico «manancial que dava aos camponeses uma situação de estabilidade». Tanto que levou os interessados a fazer os registos pela calada. Opção acertada já que os habitantes «não tinham argumentos nem quem os defendesse». Estavam por conta própria na medida em que nem o então presidente da câmara, Porfírio Augusto Junqueiro, os defendeu quando foram chamados a tribunal. Nunca saberemos o que esteve por detrás da atitude do presidente, mas, nas palavras da viúva, Mercedes Junqueiro, poderá ter a ver com questões legais. «Seria possível ao presidente da câmara opôr-se a uma lei emitida pelo Tribunal?», pergunta. O facto é que existiam registos de propriedades, e garantias orais de pertença de terrenos. E a decisão tombou a favor daqueles que tinham os registos. Mas Mercedes Junqueiro garante que a decisão não foi tomada «friamente». Foi uma decisão «demorada e dolorosa». E finaliza, «eu e o meu marido tivemos muita mágoa pelo povo do Colmeal».
À espera de respostas concretas
Após o 25 de Abril o processo foi reaberto, as pessoas foram ouvidas no Tribunal de Figueira, por um desembargador vindo de Coimbra, e ficou decidido que poderiam regressar às suas casas e terras, ficando a parte do Pradinho para a actual quinta. Uma decisão publicada em edital nas várias aldeias do concelho. Aires Cruz ainda se lembra desse edital estar afixado em Freixeda do Torrão e no Bizarril, e de ter recebido posteriormente «um exemplar em Angola», que deixou na casa que teve de abandonar devido à Guerra Civil.
O Governador Civil da Guarda na altura era Manuel Cardoso Vilhena. A 4 de Janeiro de 1989, Fernando Carrilho Martins, então autarca de Figueira, publicava um edital onde tornava público que, «nos termos do Decreto-Lei nº 205/88, de 16 de Junho último, e por força do disposto no artigo 2º da mesma disposição legal, a partir deste data, adaptação ou alteração dos bens imóveis classificados ou em vias de classificação e das respectivas zonas espaciais de protecção têm de ser assinadas por arquitectos». Da lista de bens imóveis que se encontravam classificados, constava a Povoação do Colmeal como imóvel com valor concelhio.
Em 1993, Aires Cruz apresentou o caso ao Procurador-Geral da República e demais autoridades, onde não pôde deixar de se mostrar indignado com todo este processo e acusa as autoridades judiciais de «não saberem, ou não quererem ver que estavam a praticar uma injustiça, em vez de aplicar a justiça». Até à data, e apesar de ter feito várias diligências, ainda não recebeu respostas concretas, e aguarda que seja feita «justiça a uma aldeia antiquíssima».
Fonte: Gabriela Marujo, Os despojos do dia, Terras da Beira, edição de 9-10-1997
Imagem: http://www.novaaguia.blogspot.com
Acto Terceiro – As perspectivas de regresso
Da casa onde Jacinta Carvalho nasceu e viveu até aos 21 anos já só resta parte das paredes exteriores. A aldeia fantasma do Colmeal é toda ela ruína, da igreja que já perdeu o telhado àquele que terá sido um imponente solar, no extremo oposto. «Esta não é a minha terra», reage emocionada a idosa, que, no último sábado, visitou pela primeira vez a aldeia desde os acontecimentos daquela manhã de Julho de 1957 - em que os habitantes foram despejados por uma ordem judicial, num caso único nos anais da justiça portuguesa. Jacinta Carvalho vive a uns 13 quilómetros do Colmeal, em Castelo Rodrigo, e conseguiu estar 52 anos sem voltar à sua terra natal. Por opção. A sua família, tal como as restantes 12 que aqui moravam em regime de foro, perdeu tudo. Confessa que lhe custa recordar o quanto o pai chorou naquele dia, em que a família se mudou para Castelo Rodrigo, para a casa onde morava já uma irmã, que entretanto ali tinha casado. Foi aqui que recomeçou a sua vida, que também casou e teve três filhos. Começa por responder com um «não sei porquê» quando questionada acerca dos motivos que a levaram a aceitar o convite de O INTERIOR para voltar à aldeia. E emociona-se novamente. Diz que não foi pela recente decisão da Assembleia Municipal de Figueira de Castelo Rodrigo de criar um grupo de trabalho para averiguar do potencial turístico do Colmeal – baseado na sua história, nas potencialidades ambientais e ainda no facto de por aqui ter morado a mãe de Pedro Álvares Cabral – e nem tão pouco pela possibilidade de vir a recuperar a casa da família. «Para que a quero agora?», questiona.
Jacinta Carvalho não tem planos para a casa. «Não vim cá antes porque tinha medo de me sentir mal», confessa. Veio agora porque, a cada vez que respondia com um “não” aos sucessivos convites de familiares e outros ex-moradores, crescia a curiosidade em saber como estaria a sua pequena aldeia: «Olhe, já não aguentava mais», desabafa.
Jacinta Carvalho recorda-se bem do dia do despejo. Conta que foi a mãe que na véspera, numa ida a Figueira Castelo Rodrigo, soube que na manhã seguinte iriam ser despejados. Tudo porque o feitor subarrendatário não pagava a renda há quatro anos àquela que era, de acordo com uma escritura de 1912, a nova e legítima proprietária dos terrenos dos herdeiros dos condes de Belmonte. A mãe da então jovem Jacinta Carvalho apressou-se a regressar à terra para avisar os aldeões. Na altura, Jacinta Carvalho era já a única de seis irmãos a residir ali com os pais. «Tínhamos uma boa seara nesse ano e então passámos a noite toda a tentar levar para Castelo Rodrigo o máximo que conseguíamos», recorda. Com o amanhecer veio o inevitável: 25 praças e três oficiais da GNR irromperam pela aldeia, entraram nas casas, retiraram os pertences dos moradores e colocaram-nos nas proximidades da Quinta Serra, a mais de um quilómetro. «Os nossos bens estavam misturados com os dos outros», conta. A família pegou nos seus pertences e rumou para Castelo Rodrigo. Outras permaneceram por ali até encontrarem um tecto.
«Um erro judicial, matricial e histórico»
Foi o caso de Aires Cruz, outro ex-habitante, que há 17 anos tenta perceber o que diz ter sido «um erro judicial, matricial e histórico». Tinha na altura 9 anos. «Foi muito complicado», lembra. A mãe era uma viúva com cinco filhos para sustentar. A família acabou por fixar-se em Freixeda do Torrão. Agora, Aires Cruz mostra-se algo céptico em relação às recém-anunciadas intenções da autarquia, mas diz que são «boas notícias» e que «já é tempo de ser feita justiça». O antigo residente do Colmeal tem mesmo uma monografia para publicar no próximo ano, onde diz provar que se tratou «de uma apropriação de terras indevida». O Colmeal é sede de freguesia e está provado documentalmente que é paróquia, desde 1940, refere Aires Cruz. «O documento nunca foi apresentado em tribunal, que considerou erradamente o Colmeal como quinta», sustenta. O resultado das suas investigações já o levou mesmo a escrever ao Presidente da República, Procurador-Geral da República e presidente do Supremo Tribunal de Justiça, entre outros. Aires Cruz diz esperar agora que a autarquia não se fique pelas intenções.
Fonte: Sandra Invêncio, De regresso ao Colmeal, 52 anos depois, Interior, edição de 21-05-2009
Imagem: Id.
Update... quase tudo na mesma!
“Da igreja restam as colunas, o arco e pedaços de parede. Os proprietários cederam-na à paróquia no ano passado, entregando algumas imagens que se julgavam desaparecidas.
Quando chegou à presidência da câmara, há seis anos, António Edmundo contactou os proprietários das terras. Falou «com o pai e com o filho, e nada». Já vai na «terceira geração» e espera agora que o neto resolva a situação.
«Ainda há quatro ou cinco famílias vivas» de antigos habitantes e cada uma devia ter a oportunidade de recuperar a sua casa ou de a transformar para acolher os turistas que ali se deslocassem, e a casa dos Cabral seria o local colectivo, para reuniões, bar, restaurante – foi este o desafio que o autarca lançou ao actual proprietário, mas a ideia «praticamente não avançou», lamenta.
«Há muita confusão à volta do processo», que chegou a ser estudado por uma comissão na assembleia municipal – mas «que não fez nada praticamente». A autarquia gostava de ver o passado posto de lado «antes que se perca aquilo tudo».
«Turismo de aldeia» era o que António Edmundo gostava de ver nascer no local e até já apresentou um plano de viabilidade ao actual dono – que devia, na sua opinião, recorrer a fundos comunitários. A autarquia assumiria a recuperação da capela, a chegada de água e energia à aldeia, os arruamentos.
António Edmundo até já aproveitou os fundos comunitários para caminhos rurais e fez uma estrada em paralelo até Colmeal, num projecto que custou 89 mil euros (comparticipado em 66 mil pela União Europeia). A estrada termina onde as ruínas começam.
In http://www.cafeportugal.net, sábado, 9 de Julho de 2011