Por Leonel Salvado
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O rio Calvo, afluente do Rio Rabaçal, ainda é uma das referências do património natural do concelho de Valpaços que em vários locais do seu quadrante setentrional proporciona aos visitantes boas oportunidades para desfrutarem de ambientes de frescura e paz de extraordinária beleza paisagística que fazem a maravilha dos espectadores especialmente dos mais nostálgicos. Tem admiravelmente merecido o maior apego e carinho da parte dos moradores (de várias gerações!) das localidades que lhe estão próximas.
Mas para além da beleza natural que ainda nos oferece, o rio Calvo foi acima de tudo, durante séculos e até um passado relativamente recente, uma fonte essencial de recursos para a sobrevivência de algumas comunidades localizadas nesse espaço. Das suas águas se serviam os povos, na maior parte dos casos livremente, para “limarem prados e Linhares”, regarem terrenos de cultivo, darem de beber ao gado, fazerem funcionar moinhos e azenhas e obterem variáveis castas de peixes. Na maior parte das suas margens abundava uma grande variedade de vegetação silvestre e árvores de grande porte e noutras partes se viam cultivar as terras de vinhas, castanheiros e outras árvores de fruto.
O Rio Calvo visto por uma lebuçanense dedicada às coisas do Património
«Chama-se Calvo e corre em leito apertado, aconchegante, junto dos moínhos do Pimentel, como são conhecidos.
Há uma manta verde, muito verde, que cobre a área envolvente, salpicada de outros tons, agora que é Primavera.
O rio canta melodias, batendo nas pedras que descansam no leito e, muitas vezes, adormece à sombra dos amieiros que lhe bordam as margens.
Já foi pão que matou a fome do povo, quando as suas águas faziam mover as mós dos moínhos que labutavam dia e noite, numa azáfama que não tinha fim.
Hoje, os moinhos estão desmantelados pelo tempo e pela incúria do homem, mas há memórias, doces memórias, que jamais se desvanecerão.»
O rio Calvo, segundo Adérito Medeiros Freitas
«O rio Calvo nasce nas proximidades de Dadim, concelho de Chaves, como nome de Ribº de Lamigueiras. Tem como afluente, na margem direita, a Ribeira do Porto de Veiga. Depois da Ponte da Pulga (E.N. 103), adquire a designação de Ribeiro da Pulga; esta ponte foi destruída por uma violenta trovoada que ocorreu no dia 17 de Junho do ano de 1939. Nas proximidades da aldeia e freguesia de Nozelos é chamado Ribº de Nozelos e, a partir das proximidades de Tinhela recebe a designação de Rio Calvo. Em resumo, o Rio Calvo passa nas proximidades das aldeias de Pedome e Nozelos, e por Tinhela, Agordela, Calvo e Vale de Casas indo, finalmente, desaguar na margem direita do Rio Rabaçal, depois de ter passado pela Ponte Romana do Arquinho. […] Existiram, ao longo deste curso de água, 44 moinhos hidráulicos (43 moinhos de rodízio e 1 azenha).»
In Moinhos (Moinhos de rodízio e azenhas), Concelho de Valpaços, Vol. I, CMV,2009, p. 156
Se recuarmos aos meados do século XVIII encontramos em alguns documentos, entre outras informações, indicações acerca desta realidade, nem sempre muito claras e condizentes mas suficientemente conformes com ela.
O Rio Calvo nas Memórias Paroquiais de 1758
LEBUÇÃO - A crer no pároco memorialista desta freguesia, no século XVIII o rio Calvo tinha origem na conjunção das águas de duas nascentes distintas, ambas localizadas dentro dos limites da freguesia (abadia) de Cimo de Vila de Castanheira (actualmente do concelho de Chaves), a primeira no sítio do Pereiro (que entretanto terá secado) e a segunda junto à aldeia de Dadim, a que actualmente se tem por única nascente. O seu percurso pelas terras do actual concelho de Valpaços era já descrito pelo mesmo pároco de Lebução, grosso modo em conformidade com a descrição de Medeiros Freitas, ao mesmo tempo que destacava a grande quantidade de moinhos nele em actividade, desta forma:
«Pela parte do Poente e margens das terras de Tronco corre um regato que neste lugar se lhe pode chamar rio, o qual nasce num sítio chamado Pereiro que é termo de Cima de Vila de Castanheira e este se junta com as águas do lugar de Dadim aonde chamam Valados, as quais juntas e incorporadas umas nas outras fenecem o regatinho que por diminuição não tem nome distinto e vai formando um ribeiro com elas que se chama ribeiro da Pulga no qual há infinitos moinhos. E tem o tal regato uma légua de comprimento, de onde nasce, que é na parte do Norte, até quando chega ao lugar de Pedome, anexa desta freguesia e ali tem uma ponte de pedra e de pau, onde se passa para o lugar de Tronco.
E logo mais abaixo tem outra ponte que é somente de pedra e que fica na estrada Real que vai de Chaves para Bragança. Este ribeiro vai dilatando seu curso, que é presente em todo o ano, por uma veiga abaixo que é termo de Nozelos e Tinhela a cujos lugares corre vizinho. Porém, ao de Tinhela se avizinha mais aonde tem uma ponte melhor do que as outras de que acima falámos, pela qual entram e saem os que vão e vêm da parte do Sul para cujo lado fica a dita ponte a respeito do tal lugar.
O Padre [cura] António Fernandes d’Além»
ANTT - Memórias paroquiais, vol. 20, n.º 71, p. 527 a 540
NOZELOS - O Pároco de Nozelos, pela mesma data, também assinala o “sítio do Pereiro” como a nascente do Rio Calvo,(“o que corre pela parte do Nascente”). Como se vê pelo excerto que se segue, dá-o pelo nome de “ribeiro de Pedome” e descreve as suas principais virtudes, a montante de Nozelos, e defeitos, sobretudo a jusante da mesma freguesia.
«Nesta terra não há rio. Nesta terra há dois ribeiros, os quais correm girando este lugar, um pela parte do Nascente e outro pela do Norte, e ambos se juntam no termo deste lugar no sítio chamado as Olgas e o que corre pela parte do Nascente tem o seu nascente daqui na distância de uma légua, no sítio chamado de Pereiro, termo de Cimo de Vila de Castanheira, freguesia de São João Baptista, e corre por terra infrutífera, porém os moradores de Cimo de Vila lhe divertem as águas para limarem os prados e Linhares com ela e o mesmo fazem os moradores da quinta de Pedome, que corre distante dela dois tiros de pedra, e entrando neste termo tem o mesmo efeito de limar os prados e linhares deste termo até onde se junta com o que corre pela parte do Norte para o Sul e, juntamente, nele há duas casas de moinhos, cada uma com duas rodas, para centeio e trigo, que moem ordinariamente desde o mês de Dezembro até ao de Maio e nele há umas castas de peixes que nesta terra se chamam escalos, os quais se extinguiram pela grande seca, porque no estio é preciso buscar algum poço mais fundo para nele beberem os gados e, assim, não cria senão escalos, rãs e cágados. Este tem o nome de ribeiro de Pedome porque passa somente na quinta chamada Pedome e tem um pontão de três traves de pau cobertas com pedras. E o que passa pela parte do Norte que nasce no sítio chamado da serra das cortiças, do termo de Bobadela, daqui distante meia légua, é mais pequeno, porém com mais substância e é mais saturável no Verão e tem o mesmo efeito de limar prados e Linhares deste termo e tem quatro casas de moinhos e as mesmas castas de pesca e, tanto que se juntam ambos não têm utilidade alguma neste termo porque correm pelo melhor sítio de terras de centeio e nelas fazem algum dano e daqui três léguas se metem no rio chamado Rabaçal.
O Padre Caetano de Sá Pereira, Confirmado do lugar de Nozelos»
ANTT - Memórias paroquiais, vol. 25, n.º (N) 42, p. 293 a 302
POSSACOS – O pároco desta freguesia que designa o Rio Calvo por “Ribeira de Vale de Casas”, também realça a grande quantidade de moinhos nele existentes:
«Passa por esta terra uma ribeira que vem de Vale de Casas. Esta corre com bastante curso por todo este termo e tem moinhos bastantes de centeio. E tem esta um arco de pedra por onde se passa para o Bispado de Miranda e é de pedra lavrada e, dizem, tinha este dois padrões feitos à romana; um foi para Vale de Telhas e outro, dizem, veio para este lugar. Esta ribeira se mete logo dentro deste termo em um rio chamado rio Rabaçal que traz seu nascimento do Reino de Galiza e corre por este termo pela estremadura do Bispado de Miranda.
O Pároco, vigário, Padre Baltazar Fernandes de Figueiredo»
ANTT - Memórias paroquiais, vol. 30, n.º 236, p. 1813 a 1816
SANTA VALHA – Por fim, o Abade de Santa Valha ainda que aparentemente equivocado quanto à nascente do rio Calvo é o único dos quatro párocos-memorialistas que o designa por este nome, a jusante de Tinhela, fazendo uma descrição suficientemente detalhada dos seus recursos e do seu percurso.
«Neste lugar de Santa Valha somente há quatro ribeiras, uma chamada o rio Calvo que nasce no lugar de [Lomba?] e suas montanhas. Nasce brando e pequeno e corre todo o ano. Entra nele uma ribeira de Alvarelhos por baixo do lugar de Tinhela, duas léguas distante da nascente. Não é rio de barcas nem capaz para isso. É de curso arrebatado em toda a sua distância. Corre de Norte para o Meio-dia. Cria muitos peixes chamados escalos. Nas margens se cultivam muitas delas de vinhas, terras, prados e tem muitas árvores de fruto, como são castanheiros, e silvestres, como são amieiros, salgueiros, carvalhos, medronheiros e outras muitas castas de árvores silvestres. Conserva sempre o nome de rio do Calvo. Morre no rio chamado o Rabaçal, rio caudaloso, no sítio do Cachão. Tem uma cachoeira no sítio de Cachão e por essa causa não sobem os peixes chamados barbos e bogas por ele acima. Tem três pontes de pau, uma chama-se a ponte de Tinhela que está no mesmo lugar de Tinhela, outra chama-se a ponte de Agordela, na quinta de Agordela, e outra na quinta do Calvo e chama-se a ponte do Calvo. Tem perto dele infinito número de moinhos, regueiros e [olmeiros?]. Usam os povos de suas águas livremente para as culturas.
Tem o rio seis léguas desde a nascente até aonde acaba e passa por seis povos: O primeiro é Tinhela, o segundo é Agordela, o 3.º é o Calvo, o 4.º é Vale de Casas, o 5.º é Poçacos e o 6.º é o Cachão.
O Abade, Padre Domingos Gonçalves»
ANTT - Memórias paroquiais, vol. 34, n.º 67, p. 601 a 606