Por Leonel Salvado
Actualizado a 10 de Maio de 2011
Ficou também conhecido como Acção Valpaços, tratando-se de um dos sucessos da história militar de relevância nacional que ocorreu junto a esta localidade, na altura ainda aldeia, embora sede municipal, depois vila e hoje cidade. O grosso dos confrontos sucedeu nos sectores ocidental e setentrional da periferia oitocentista da povoação, ainda que alguns movimentos militares tivessem, esporadicamente, inflectido um pouco mais para Sul e para Nascente.
OS ANTECEDENTES
Foi uma das batalhas que fizeram parte das lutas liberais entre cartistas (apoiantes da Coroa e da Carta Constitucional) e setembristas (liberais radicais apoiantes da restauração da Constituição de 1822). Este período de guerra civil, a que se passou a designar de Patuleia vinha na sequência do movimento revolucionário que ficou conhecido por Maria da Fonte; afirmou-se na Primavera de 1846, contra o ministério cartista de Costa Cabral e foi despoletado pelo golpe de Estado de 6 de Outubro do mesmo ano, levado a cabo pelo duque de Saldanha (antigo setembrista que abraçou os ideais cartistas), com o apoio da rainha D. Maria II, a qual entendeu assegurar assim a manutenção do trono e da Carta, em aparente risco dada a progressiva intensidade de movimentos anti-cabralistas por todo o país. Os mais acirrados sinais de indignação e contestação perante aquele golpe palaciano, fizeram-se sentir na cidade do Porto, que era então o maior baluarte das hostes setembristas, e, logo aí, o presidente da Câmara, José Passos, mandou encarcerar no Castelo da Foz, o enviado especial da soberana, Duque da Terceira, e nomeou uma Junta Provisória do Supremo Governo do Reino, tal como o haviam feito, 26 anos antes, os primeiros revolucionários liberais do vintismo. No Norte do país, os mais famosos chefes militares setembristas estiveram com a Junta, designadamente os condes das Antas e do Bonfim e o Visconde de Sá da Bandeira. O Governador das Armas de Trás-os-Montes, Barão do Casal, manteve-se fiel à Rainha e a Saldanha e para dar as melhores provas da sua lealdade apressou-se em reunir toda a tropa que lhe foi possível arregimentar, e com ela partiu de Chaves, a 23 de Outubro de 1846, disposto a atacar a Junta do Porto e ganhar nesta cidade novos partidários. Contudo, em Valongo deu de caras com as forças do Visconde de Sá da Bandeira, General da Junta do Porto, retrocedendo e optando por fazer a travessia do Douro para se juntar às forças do marquês de Saldanha, que actuava na Beira. Com essa intenção passou a Régua, no dia 4 de Novembro, e preparou-se para transpor o rio, pelo Pinhão, mas o Barão de Castro Daire, avisado da sua marcha, impediu-lhe a passagem, fazendo encostar na margem esquerda todas as embarcações que aí se encontravam. Resignado perante o malogro de mais um dos seus intentos, retirou-se para Chaves, pelo caminho de Sabrosa, onde deu entrada quatro dias depois. Entretanto, Sá da Bandeira, que resolvera ir no encalço do Governador das Armas de Trás-os-Montes e dar-lhe batalha onde pudesse nos seus próprios domínios, passou a noite de 10 de Novembro em Carrazedo de Montenegro e dois dias depois assentava arraiais na Veiga de Chaves, estabelecendo em Faiões o seu quartel-general. Mas a 15 de Novembro, por razões que nunca foram devidamente esclarecidas, especulando-se que devido a alguma desconfiança do General quanto à lealdade dos seus regimentos de Infantaria 3 e 15, Sá da Bandeira desistiu da tomada de Chaves e ordenou aos seus homens que iniciassem a retirada em direcção a Mirandela. Pernoitaram as duas brigadas em Ervões e Vilarandelo, e a 16 de Novembro foi retomada a marcha, com uma curta paragem em Valpaços, prosseguindo a mesma na direcção de Rio Torto. Para sua surpresa, porém, chega-lhe a informação de que o Barão do Casal vinha em sua perseguição e se encontrava nas proximidades de Valpaços.
A “ACÇÃO VALPAÇOS”
Confirmada a aproximação a Valpaços do exército cartista, Sá da Bandeira fez retroceder as suas divisões aos limites da povoação e preparou-se para o confronto com as forças favoráveis à rainha e à Carta Constitucional.
As forças em confronto e as primeiras posições de combate
Como sublinha o Padre Vaz de Amorim, em artigo redigido em 1944 e publicado na Revista Aquae Flaviae, O Barão do Casal, que contou com a cooperação militar do Visconde de Vinhais, chefiava, desde o dia 23 de Outubro de 1846, uma brigada composta pelos Regimentos de Cavalaria 6 e 7, pelo batalhão de Caçadores 3 e pelo Regimento de Infantaria 13.
PRIMEIRAS POSIÇÕES DE COMBATE - 16 DE NOVEMBRO DE 1846
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Foi a maioria destas forças disposta em posições topograficamente vantajosas no alto de Mempaz, por cima do Barreiro, e as restantes em locais contíguos à área ocupada pelas forças inimigas, que assinalaremos adiante.
Segundo o mesmo autor, que se baseou nas informações do general Ribeiro de Carvalho e que constam na sua obra Chaves Antiga, o Visconde de Sá da Bandeira havia partido do Porto com uma divisão composta por duas brigadas: Uma brigada constituída por Infantaria 3, Guarda Municipal do Porto, 1º batalhão dos Artistas da cidade do Porto e um contingente do 2º batalhão da mesma unidade; uma outra brigada formada por Infantaria 15, um contingente de Artilharia 3 e pelos batalhões de Vista Alegre e de Baião.
Tratou o General da Junta do Porto de posicionar uma parte da sua divisão, constituída pela Guarda Municipal do Porto, o batalhão dos Artistas da mesma cidade e o batalhão de Vista Alegre fora da Vila, a Sul e no caminho de Ervões, desde o cimo da Cortinha Grande até à Veiga; para assegurar a esquerda da linha defensiva foram os regimentos de Infantaria 3 e 15 e o batalhão de Baião colocados em vários dos pontos mais altos da Cortinha Grande, Vale-das-Amoreiras e Fontainhas.
A primeira fase dos combates
Iniciou-se o confronto por volta das 3 horas e trinta minutos da tarde de 16 de Novembro (uma Segunda Feira) de 1846 quando o Visconde de Vinhais avançou sobre a esquerda da linha defensiva de Sá da Bandeira, ao comando de uma parte da Cavalaria, algumas forças do batalhão de Caçadores 3 e da Infantaria 13, soltando vivas à Rainha e à Carta e acercando-se dos Regimentos de Infantaria 3 e 15. A soldadesca da Infantaria 3 depressa se rendeu à causa cartista e as praças do Regimento de Infantaria 15 seguiram-lhes o exemplo, rebelando-se contra as ordens do seu comandante, o coronel Feio, que havia dado ordens para que formassem em quadrado de modo a resistirem à Cavalaria inimiga. Foi o coronel imediatamente preso, juntamente com outros oficiais que também insistiram em manter a sua lealdade a Sá da Bandeira e à causa dos patuleias.
DESENVOLVIMENTO DO CONFRONTO - 16 DE NOVEMBRO DE 1846
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Apanhados no meio de tal confusão os populares do batalhão de Baião precipitaram-se sobre o reduto onde se dera à traição, crendo que a cavalaria tinha sido dominada pelos seus, mas foram logo recebidos a tiro pelos próprios regimentos traidores e seus novos aliados, debandando e, em grande desordem, perseguidos pela Cavalaria ao longo dos trilhos, matas e pinhais de Rio-de-Lobos, Guitarro e Carrapata que se estendiam em direcção a Rio Torto, sendo por ali massacrados e alguns dos seus cadáveres barbaramente mutilados.
Desta traição surgem ecos na imprensa regional coeva, tal como se dava conta "António Rodrigues Sampaio, jornalista e político no Portugal Oitocentista", segundo o livro publicado com este título por um grupo de autores sob coordenação de Jorge Pedro Sousa, que do referido jornalista fazem a seguinte citação, um pouco vaga mas suficientemente elucidativa:
«O estandarte popular tremula em todo o país. A opressão tem por seu apenas os palmos de terra que pisa. (…) A resistência foi simultânea no Porto, Coimbra e Algarve. (…) Em Viana do Alentejo derramou-se em batalha campal o primeiro sangue. (…) O Alentejo ficou livre (…). Em Trás-os-Montes, a causa popular foi menos feliz. O povo decidiu-se logo por ela (…), mas traído pelo barão do Casal levantaram mãos (…) contra os seus próprios pais e irmãos – Vagabundos e fugitivos, percorreram esses soldados algumas terras do Minho, que assolaram com as suas violências (…) – fugiram das vista do Porto e foram encurralar-se em Chaves (…). O que não pôde fazer o valor, fê-lo o ouro (…) e na acção de Valpaços, por uma vergonhosa traição, (…) entregaram-se.» [1]
Rompida a esquerda defensiva organizada peloVisconde de Sá da Bandeira, esteve este mesmo General da Junta do Porto em risco de ser capturado pela infantaria inimiga, não fora a pronta intervenção do seu ordenança, mais tarde celebrizado com o nome de Zé do Telhado, que arrojadamente o resgatou das mãos de alguns infantes, acto que iremos descrever mais para a frente neste artigo. Sob vigilante guarda do seu fiel ordenança, Sá da Bandeira foi conduzido em segurança para os Penascais, na estrada de Rio Torto.
O confronto final e o seu desfecho
Observando do sítio dos Penascais que o fogo continuava e que a linha de defesa parecia recompor-se, Sá da Bandeira voltou a ela, percorrendo-a e encarando de novo o inimigo no local do Barreiro. Enquanto anoitecia, o combate tornava-se mais aceso, disputando-se o terreno palmo a palmo, sem ganhos significativas de parte a parte. Uma porção do que restava das forças de Sá da Bandeira tentou ainda heroicamente subir as vinhas da Veiga e confrontar o inimigo naquele mesmo sítio do Barreiro. Nesta fase mais viva, mas ainda de incerteza quanto aos resultados da peleja, o fogo estendia-se em arco de círculo desde o Vale-das-Amoreiras até à Freixeda.
BATALHA FINAL - AO ESCURCER DE 16 DE NOVEMBRO DE 1846
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Cederam, por fim, já noite adentro os
patuleias, e, segundo a descrição coeva da batalha registada numa folha de papel almaço por Constantino de Castro, salvaguardado pelo filho, Joaquim de Castro Lopo e, enfim publicada pelo neto, Constantino de Castro Lopo, em “O concelho de Valpaços, por Valbel” (L. Marques, 1954, pp. 87- 90), Sá a Bandeira, na companhia de todo o seu contigente, «
recolheu a Valpaços e pela meia noite marchou estrada de Murça», acrescentando (em nota) que lhe serviu de guia «
um popular de Valpaços de nome Luís Teixeira Ferlim, por alcunha o 'Sete fêmeas'». Segundo Castro Lopo, foram apenas em número de dezassete as vítimas mortais resultantes do combate e em número de quatro os feridos.
Considerações finais sobre a batalha
A retirada «por Murça até ao Pinhão onde as tropas liberais de Sá da Bandeira tomaram barcos e regressaram ao Porto pelo rio Douro» (“João da Ribeira, Revista Aquae Flaviae) selava a derrota dos patuleias na “Acção Valpaços”, sendo assim que é considerada na História de Portugal.
Da sua retirada para o Porto, regista ainda o jornalista António Rodrigues Sampaio os sucessos cometidos por Sá da Bandeira no inesperado confronto a que ainda foi sujeito contra as forças de MacDonell, chefe liberal dos miguelistas que entretanto fora aliciado pelos cabralistas:
«McDonell [chefe dos rebeldes miguelistas] foi chamado entre nós pelos cabralistas (…) e ousou atacar as forças do visconde de Sá na sua marcha para o Porto. O resultado desta ousadia foi deixar no campo (…) 17 mortos, muitos prisioneiros, e escapar ele mesmo por uma precipitada fuga para ir contar ao seu cúmplice Casal a notícia da sua derrota.» [2]
Encarada, todavia sob o ponto de vista dos seus resultados práticos e até à luz da ética militar, existem óbvias objecções quanto à legítima vitória dos partidários da rainha e da glória que seria de lhes caber na Acção Valpaços.
Uma dessas objecções surge-nos na expressão do general Ribeiro de Carvalho, cuja obra já foi por nós mencionada, e encontrámos citada pelo mesmo Padre Amorim da seguinte forma:
«As tropas da patuleia foram enfraquecidas por uma traição e as do governo não souberam aproveitar a sua superioridade numérica, abandonando o campo do inimigo, sem que sobre ele tivessem alcançado qualquer resultado decisivo». [3]
Outra objecção retira-se da memória das populações das imediações de Valpaços, sobretudo da de Vilarandelo, acerca dos roubos e estragos aí praticados durante e após os confrontos militares, memória essa registada no papel por Joaquim de Castro Lopo e pelo mesmo realçada numa pequena anotação que é a seguinte:
«Foram tão grandes os roubos e estragos causados pelas tropas do Casal em Vilarandelo que ainda hoje (1942) estão vivos na lembrança do povo.» [4]
Ainda a propósito dos excessos cometido em Vilarandelo pelas tropas do Casal se faz eco A. Veloso Martins, nos seguintes termos:
«Terminada a violenta refrega, as tropas do Casal, na euforia da vitória, subiram a Vilarandelo a pilhar e a saquear a indefesa população» [5]
Tais excessos, também praticados em outros lugares, como em Ervões, contrastaram, segundo o insigne autor valpacense, com a brandura e probidade com que geralmente se portou a gente de Sá da Bandeira. Apesar do indecoroso, aliás irónico, comportamento da soldadesca confiada ao General das Armas de Trás-os-Montes contra a própria gente da sua circunscrição, deixou o mesmo Joaquim de Castro Lopo algumas notas de justa homenagem, mais tarde sucintamente relembradas por Veloso Martins na sua Monografia de Valpaços, sobre a dignificante postura da população desta povoação que, segundo este último autor, tratou de dar piedosa sepultura aos mortos no seu cemitério e o melhor tratamento aos feridos, sem olhar a partidos. Observe-se que, segundo Castro Lopo, 4 dos 17 mortos sepultados no cemitério de Valpaços pertenciam às forças do Casal, sendo um de Cavalaria, um de Caçadores e dois do Regimento de Infantaria 13. Acerca do tratamento dado aos quatro feridos, ele foi prestado, segundo a mesma fonte, com a «caridade digna de todo o elogio, sendo assiduamente assistidos pelos hábeis facultativos, o médico Zeferino José Pinto e o cirurgião Garcês.»
A Acção de José do Telhado
Desenho e guache de Leonel Salvado
Não obstante o desaire dos
patuleias na
Acção Valpaços, destacou-se nela o feito heróico de uma das figuras das fileiras da Junta do Porto, José Teixeira, a quem se deve o salvamento da vida do respectivo general, o Visconde de Sá da Bandeira, na ocasião da traição dos regimentos 3 e 15. Imortalizado mais tarde pela tradição com o nome de
José do Telhado por actos menos honrosos, adquiriu em todo o país a fama de fora-da-lei e de temido salteador, cujas façanhas mereceram a atenção de destacados escritores e autores de Banda Desenhada que o retratam nas suas obras. A sua invulgar bravura em batalha já havia sido notada pelo duque de Saldanha na
Revolta dos Marechais, em 1837, enquanto
lanceiro da Rainha, tendo sido por recomendação do mesmo Saldanha que passou a
ordenança nas hostes de Sá da Bandeira. Diz-se que, sendo já
sargento, em 1847, por ocasião da
Convenção do Gramido (que pôs termo às guerras da
Patuleia), arrancou as divisas e se fez salteador. Existem várias versões, nem todas condizentes, a respeito dos pormenores acerca da sua arrojada acção em Valpaços, das quais prefiro transcrever a que retirou Joaquim de Castro Lopo das
Memórias do Cárcere, contada pelo próprio
Zé do Telhado a Camilo de Castelo Branco, com quem conviveu nos calabouços da Relação do Porto e quem a registou na sua obra, entre de outras façanhas que o bravo proscrito lhe foi relatando.
«Quem nesta ocasião [da entrega dos dois regimentos, 3 e 15] valeu a Sá da Bandeira foi o mais tarde célebre salteador José do Telhado. Este acompanhava Sá da Bandeira como ordenança. Na passagem dos dois regimentos de infantaria, um soldado de infantaria lançou a mão às rédeas do cavalo do general, outro fez-lhas largar. José do Telhado que tudo presenciou, tomando as rédeas do cavalo do general e metendo o seu a galope, obrigou os cavalos a saltarem um valado. No mesmo momento algumas balas passaram por cima da cabeça de Sá da Bandeira, lançadas pelas espingardas de soldados de um dos regimentos traidores. Três soldados de cavalaria carregaram sobre Sá da Bandeira. José do Telhado fez-lhes rosto. Desarmou um, feriu outro mortalmente e ao terceiro que ia fugindo, varou-o pelas costas. Cumprida esta façanha, José do Telhado recebeu das mãos do general a condecoração da Torre e Espada.» [5]
Referências
[1]SOUSA, Jorge Pedro et alii, António Rodrigues Sampaio, jornalista (e) político no Portugal Oitocentista, Labcom 2011, p. 112.
[2] Id. Ibid., p. 116
[3] AMORIM, Padre João Vaz de, Revista Aquae Flaviae, n.º 14, 1995, p. 196
[4] LOPO, Joaquim de Castro, O Concelho de Valpaços, por Valbel, Lourenço Marques, 1954
[5] MARTINS, A. Veloso, Monografia de Valpaços, Lello & Irmão, 2.ª edição, Porto 1990, p.75
[6]LOPO, Joaquim de Castro, id. Ibid.
Nota Final: A reconstituição cartográfica aqui elaborada, em três partes, é de limitado rigor, e portanto, sujeita a modificações. Em todo o caso, cumpre dirigir uma palavra de agradecimento ao Sr. Manuel Terra pela diligente colaboração prestada na exacta localização de alguns topónimos mencionados nos documentos antigos que consultei relativos ao combate de Valpaços. Uma nota de agradecimento ainda a João António Vaz, natural de Valpaços, a quem ficámos a dever a referência bibliográfica que nos foi proveitosa e se encontra assinalada em [1] e [2].