sábado, 3 de março de 2012

As serras e as lendas - a lenda de São Leonardo e Santa Comba dos Vales

Por Leonel Salvado


São numerosas as serras a que, em Portugal como em outras partes do mundo, estão ligadas variadas lendas, umas mais antigas do que outras, umas preservadas e transmitidas por via erudita, outras simplesmente mantidas no imaginário colectivo por via da tradição oral. Talvez seja de concluir serem raras as serras que em Portugal que não tenham a sua própria lenda.
Algumas delas, posto que nada tenham a ver com o sobrenatural mas apareçam relacionadas com determinados corpos celestes, como são os casos da lenda da Serra da Estrela e da Serra de Sintra (a lua), talvez possam radicar-se nos ancestrais cultos pagãos associados às forças da natureza e aos fenómenos astrais.

Outras conhecidas lendas, mais numerosas, onde inevitavelmente a realidade e a fantasia se misturam, traduzem histórias que envolvem figuras reais ou imaginárias (santos ou heróis populares, aventuras e desventuras amorosas…). Entre a grande maioria destas, que contêm vagas referências de enquadramento histórico, avultam as que se reportam a histórias passadas na época de dominação árabe ou de alguma forma ligadas a este povo. Trata-se de um denominador comum e peculiar do imaginário colectivo da Península Ibérica de que são particularmente sintomáticas inúmeras lendas portuguesas e que se explica pela memória que os povos ainda guardam da última grande invasão e subsequente difícil convivência de mais de cinco séculos entre cristãos e muçulmanos. A ainda hoje ressentida presença histórica do “elemento árabe” no nosso território afigura-se nestas lendas, principalmente entre as comunidades do Norte, como a mais remota referência histórica da sua consciência idiossincrática larga e predominantemente baseada na tradição cristã. Assim, também se tem visto conservadas em muitas regiões as lendas de mouras encantadas, de escondidos tesouros fabulosos de um qualquer “El- rei mouro” associadas a outras formações naturais como grutas ou simples penedos, a ruínas de vetustas fortificações ou a outros enigmáticos monumentos arqueológicos como são os casos dos “berrões” que proliferam numa vasta área que se estende desde o Nordeste de Portugal, em Trás-os-Montes e Alto Douro, junto às margens deste rio, prolonga-se pela Beira Interior Norte (em Ribacôa) ao longo da margem ocidental do rio Águeda e chega às províncias de Cáceres, Ávila e Salamanca, em Espanha.

Voltando às Serras e suas lendas, se há lendas que desde há séculos têm merecido a atenção de insignes escritores etnólogos e historiadores e ainda continuam a andar de boca em boca entre os versejadores populares, uma das mais belas é a Lenda de Santa Comba dos Vales e do Rei Mouro “Orilhão” de Lamas, religiosamente guardada pela população da actual aldeia e freguesia de São Nicolau dos Vales, concelho de Valpaços que está situada nas faldas da serra de Santa Comba (na imagem), paróquia de antiquíssima fundação, provavelmente pré-nacional (como admite Veloso Martins) que nos séculos XII e XIII ainda era designada por Santa Comba de Orelhão ou dos Vales contemporânea e vizinha, mas distinta, da paróquia de Santa Cruz de Lamas de Orelhão que é actualmente freguesia de Mirandela. Como bem anotou A. Veloso Martins na sua Monografia de Valpaços, é uma “das mais belas lendas fixadas a ouro fino na história da literatura portuguesa”. Na verdade, ela já era cantada assim nos “Poemas Lusitanos” do ilustre humanista quinhentista António Ferreira (1528 – 1569), introdutor da tragédia clássica em Portugal e que viveu em Lamas de Orelhão em terras de Mirandela:

No tempo em que a infiel bárbara gente
Da mísera Espanha ocupava a terra,
E o sangue derramava cruelmente
Dos poucos que escapavam da ímpia guerra,
Uma moça belíssima e inocente
Passava a vida na mais alta serra,
Que entre Tâmega e Tua hoje parece,
Onde o sol em nascendo resplandece
Conta-se que reinava um grã Rei Mouro
Entre Tâmega e Tua, e que ocupava
Toda a terra de Lamas, rica d’ouro,
Rico de grosso gado, que criava
Em cada serra tinha um grã tesouro
Junto do muito que ós Cristãos roubava
Já a Pastora [Comba] chegava ao alto cume
Da serra, onde é mais alta a penedia
Dond’o olho abaixo olhando perde o lume
E entr’ela e o Rei só a lança se metia,
Já lhe chega o Tirano, e já presume
Que nem em terra, ou no Céu lhe escaparia,
Quando Comba gritou: ó Rocha alta onde
Venho buscar abrigo, em ti me esconde.

Ó Maravilha grande! Abrio-se a pedra
Obedece à Santa a rocha dura,
Obedeceo à Santa e abrio-se a pedra,
E defendeu-a da cruel ventura.

Trasncrição do excerto de A. M. Freitas, “Fontes de
Abastecimento de Água,Concelho de Valpaços”,
vol. II, CMV, 2005

Ainda que pelo século XIV fosse Santa Comba substituída, no orago da paroquial igreja dos Vales, por São Nicolau, nunca a tradição deixou que a Santa pastora fosse apartada da memória dos paroquianos e a sua maravilhosa lenda de tal modo se propagou pelas terras do concelho de Valpaços e pelo Norte do país que chegou a ser admiravelmente apreciada e divulgada pelo notável linguista, filólogo, arqueólogo e etnógrafo português, José Leite de Vasconcelos (1858 – 1941) na sua grandiosa obra “Religiões da Lusitânia” em igual estreita relação com uma outra lenda que os habitantes da mesma freguesia de Vales também e desde tempos imemoráveis estabelecem: a do milagroso poço de São Leonardo (também pastor e irmão de Comba) que é hoje uma fonte de mergulho criteriosamente estudada e publicada por Adérito Medeiros Freitas na obra a que atrás aludi, ao lado da qual foi recentemente edificada uma pequena capela dedicada ao Santo popular (na imagem).

Em manuscritos dos meados do século XVIII aparecem claras referências à devoção que os povos ainda prestavam a Santa Comba e a São Leonardo entre outras mais vagas referências ao seu motivo. É o caso da seguinte “notícia” do Reitor de São Nicolau dos Vales, Simeão Nunes, sobre esta freguesia, em resposta aos interrogatórios para as “Memórias Paroquiais” postos a decorrer em todas as paróquias do país no ano de 1758:

No alto de uma serra vizinha da mesma paróquia, chamada a serra de Santa Comba, para a parte do Nascente, se acham duas ermidas, uma da mesma Santa Comba com duas imagens colocadas no seu altar, uma de roca e outra mais pequena de escultura de madeira, e outra [ermida] de São Leonardo, ambos irmãos pastores. Acha-se nesta uma imagem de Cristo Crucificado, com quem têm devoção os habitadores circunvizinhos, e outra do pastor São Leonardo, feita por um ermitão, de pedra Milagrosa, ainda que tosca. Pertence a administração destas capelas aos moradores desta paróquia. São estas imagens de muita veneração nas freguesias vizinhas e distantes pois, além de muitas romagens particulares que a elas fazem pelo ano, os dias em que mais é frequentada a sua casa é dia [data omissa] de Janeiro, subindo à serra na véspera e dormindo ali, e na véspera de São Lourenço, dez de Agosto, dormindo ali do mesmo modo; e são advogadas de qualquer necessidade que a recorrem.
No alto desta serra, junto à ermida de São Leonardo, se acha um poço quadrado feito de pedra. Das suas águas usam os habitantes circunvizinhos como muito medicinais para o achaque da asma; é chamado o poço de São Leonardo e há tradição que naquele lugar caíram as tripas do mesmo Santo no tempo do seu martírio.

ANTT, Memórias paroquiais, 1758 [VALES, S. Nicolau, Chaves], vol. 38, n.º 84, p. 475 a 478

É ainda o caso do testemunho deixado pelo vigário da vizinha paróquia de São Lourenço de Lilela (entretanto extinta e integrada na freguesia de Rio Torto), padre Vicente Martins, o qual menciona expressamente a alternativa toponímica, obviamente condicionada pela lenda, que, pelo mesmo ano de 1758, também se usava para designar a mesma serra de Santa Comba dos Vales:

Há uma serra chamada a serra de Santa Comba por estar nele Santa Comba, que é de outra freguesia e pega com o termo do lugar de Póvoa desta freguesia; por outro nome lhe chamam a serra do Rei de Orelhão.
Na dita serra há Santa Comba e São Leonardo, cada um com sua capela, mas juntas. Costuma haver romagem à de Santa Comba no dia de São Silvestre, no dia último de Setembro e no dia dez de Agosto, aonde sucede haver algumas bulhas e discórdias. Esta capela é da freguesia de São Nicolau dos Vales.

ANTT, Memórias paroquiais, 1750 [LILELA, Chaves], vol. 20 n.º 86, p. 649 a 654

Uma boa prova da vivacidade popular que a lenda de Santa Comba ainda conservava nos anos 90, na aldeia de Vales, é esta quadra da autoria de um dos seus naturais e residentes, José Joaquim Pereira (Sr. Zezinho), recolhida Por Medeiros Freitas:

Senhora Santa Combinha,
Rei Mouro te perseguiu.
Não triunfando de Vós,
A fraga se vos abriu.

De tal modo a força da tradição veio impondo a indissociabilidade das duas lendas que elas se fundiram numa só, o que se vê pela forma como foram contadas, em 1999, na cerimónia de inauguração da Ampliação e Remodelação dos Paços do Concelhos, na entrada de cujo edifício foi erigida uma bela escultura em bronze da autoria de José Rodrigues representando o Rei Orelhão e pastora Comba (na imagem):

No tempo em que os Mouros dominavam a Península Ibérica reinava em Lamas um rei mouro, grande, membrudo e feio como uma orelha de asno e outra de cão a quem chamavam o Orelhão.
Comba era a mais bela pastora da serrania que com seu irmão Leonardo, apascentavam o gado, tranquilos e descuidados.
A fama da sua formosura e da sua pureza chegou aos ouvidos de Orelhão que vencido pela paixão, ofereceu-lhe todas as riquezas para a conquistar.
Surda aos aliciamentos do sedutor, preferiu continuar casta, pura e humilde.
Perdidas todas as esperanças de conseguir conquistá-la a bem, o Mouro resolveu tomá-la à força.
A resistência da menina surpreendeu o Mouro que a persegue de lança em riste montado no seu cavalo. Encurralada entre o perseguidor e a penedia e ao alcance da lança, já a caminho para a atingir, Comba transbordante de fé evoca poderes divinos no sentido da rocha a abrigar. Prodigiosamente a rocha abre-se, recolhe a virgem e fecha-se numa manifestação do poder divino.
O Mouro, desesperado, ainda esboça um movimento para a matar, mas, repara em Leonardo, que também virtuoso, assistia mudo e aterrado à tragédia da sua irmã, e de imediato o trespassa, lançando o corpo a um charco próximo.
Na rocha que abrigou Comba ficou a marca da lança e da pata do cavalo do rei mouro.
A água do charco onde foi lançado o corpo do jovem tornou-se água de muitas virtudes.

Este acto evocativo celebrado pela Câmara Municipal de Valpaços com o apoio da “Árvore, Cooperativa das Actividades Artísticas C. R. L.” constitui a materialização do orgulho há muito sentido pelos valpacenses em possuir “intra-muros o cenário [a serra de Santa Comba] e o motivo [o trágico fim dos pastores irmãos] de uma das mais belas lendas” de Portugal – parafraseando o autor da “Monografia de Valpaços”, A. Veloso Martins no que já havia observado, em 1990, data da 2.ª edição desta sua obra.

2 comentários:

  1. É a história de uma lenda muito engraçada de uma pastorinha, que se passou algures naquele enorme monte, o ponto mais elevado do nosso concelho. Na minha opinião foi uma ideia brilhante em colocar este painel de azulejos invocando este tema no hall de entrada do edifício da nossa Câmara Municipal. Excelente tema para esse e este tão nobres espaços. Gosto.

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  2. Gostava de ver fotografias da pedra onde se encontra a lança e a para do cavalo de Oreilhão. Muito obrigado.

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