sábado, 29 de maio de 2010

O Estado Novo no distrito de Vila Real - ligeira variante numa terrível continuidade?

O distrito de Vila Real foi uma das regiões de condição interior e rural, senão mesmo a mais destacável de entre elas, onde os respectivos poderes periféricos agiram e interferiram de uma forma ou de outra, mas com espantosa peculiaridade, contra a instalação do regime, nos moldes em que Salazar o preconizou para o País, que é o do sentido da institucionalização de um modelo corporativo - fascista adaptado à ditadura saída da revolta militar de 28 de Maio de 1926. Tal parece ser a conclusão a que chegou o historiador Rui Ramos, por exemplo, quando se propôs inquirir «acerca do que era o Estado Novo visto por baixo, no país interior das aldeias, vilas e pequenas cidades de província, onde vivia a maioria dos portugueses dos anos 30». Para tal, dispôs este historiador de um precioso acervo documental publicado em 1982 pela Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista que integra os relatórios e documentos que o tenente Horácio de Assis Gonçalves foi enviando, durante 30 anos, a Salazar sobre a sua actividade ao serviço do regime inclusive enquanto Governador Civil de Vila Real, nos dez anos que se seguiram a 1934. Assis Gonçalves, um transmontano nascido em Vinhais (Bragança), em 1889 e um dos tenentes do 28 de Maio (ainda vivo em 1975), foi também um homem de reconhecida formação literária, da confiança pessoal do Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, a quem serviu entre 1930 e 1934 como secretário oficial. Foi a 22 de Julho de 1934 investido pelo ditador no cargo de governador civil do distrito de Vila Real. É controversa a razão que teria levado Salazar a provê-lo nesse cargo – uma conjura engendrada pelo coronel Henrique Linhares de Lima para afastar de Lisboa o jovem oficial revolucionário, em cujas veias se temia ainda fervilhasse perigosamente o espírito do 28 de Maio, absorvendo-o em tarefas administrativas no remoto distrito transmontano, ou, o que se depreende melhor das suas próprias memórias, uma decisão pragmática de Salazar em colocar ali uma pessoa de confiança para levar por diante a premente tarefa da difusão do regime – mas parece certo que a sua escolha foi condicionada pelo facto de ser um homem natural e conhecedor da realidade humana dessa província, como o próprio Assis assevera. O que aliás parece condizer com a desconfiança que a reputação do distrito de Vila Real parecia inspirar ao chefe do governo e de que Assis Gonçalves se faz eco quando se lhe referiu, no início do suas funções de Governador Civil, como um dos distritos «mais difíceis de governar».

O ambiente político e social do distrito de Vila Real era entendido na capital como seriamente preocupante, conhecida e designada que era a região como «um dos mais fortes baluartes» do Partido Republicano Português de pendor democrático. Perfilavam-se como patriarcas desse movimento, a abater ou a aliciar, influentes figuras regionais como Nicolau Mesquita que nasceu em Chaves em 1871 e que foi Governador Civil em 1917, chegou a ascender ao Senado pelo distrito e foi presidente da Câmara de Chaves entre 1923 e 1926, onde granjeou grande notoriedade e estima por uma extensa lista de obras públicas, tal como o Liceu da cidade que iria ser apontado como um dos bastiões da resistência republicana, lista essa que a campanha de desacreditação que contra ele foi urdida pela Ditadura instalada com o 28 de Maio, não bastou para ofuscar, antes serviu de motivo para uma calorosa homenagem pública que lhe foi feita em Chaves. Além disso, uma grande parte da sua «influência» e prestígio herdara-a ele de António Teixeira de Sousa, um dos líderes do Partido Regenerador dos tempos da Monarquia com quem estabelecera assinalada amizade. Outra figura temida pelos promotores do regime do Estado Novo dava pelo mesmo nome Nicolau Mesquita (presumindo-se tratar-se de filho do primeiro e seu sucessor ideológico), um conceituado advogado e que também fora Governador Civil na Primeira República, professor na Escola Industrial de Chaves e conservador do Registo Civil. Outros nomes de flavienses radicados noutras cidades do país, ficaram para sempre conhecidos pela sua firmeza de carácter e lealdade para com os seus conterrâneos na luta contra a ditadura, tais os casos do general Sousa Dias, do tenente-coronel António Ribeiro de Carvalho, cujo pai, o General Augusto Ribeiro de Carvalho ainda vivia em Chaves no tempo em que Assis Gonçalves exercia o cargo de Governador Civil.

Foi este ambiente de refracção ideológica com que Assis se deparou, lamentando o fraco entusiasmo com que Chaves o recebeu, em contraste com a entusiástica recepção que lhe reservaram os moradores da capital de distrito. A piorar a situação estava a circunstância de em Vila Real a cisão ter estalado mesmo entre os partidários da União Nacional em consequência do Governo de José Timóteo Montalvão Machado, que agora, e a contragosto, se via substituído por Assis, pelo que este logo tratou de solicitar de Salazar a atribuição de alguma distinção honorífica ao amuado Governador, antes de se dedicar com todas as suas energias às necessárias diligências para neutralizar os focos de resistência da oposição democrática e as querelas entre os grupos de pressão regionais que ameaçavam o regime. Neste intenso labor administrativo julgava o Governador Civil ter encontrado "remédio santo" para os problemas mais espinhosos. Conseguiu, com aparente golpe de sorte que o chefe dos «democráticos», Nicolau Mesquita (o primeiro), se retratasse, em nome da necessária compreensão e obediência aos valores do patriotismo, o qual acedeu em retirar-se para Pedras Salgadas dedicando-se até ao fim da sua vida, em 1941, à administração da empresa de águas termais designada então de "Sociedade de Vidago, Melgaço e Pedras Salgadas" e, portanto, deixando desamparados os inconvenientes opositores do Estado Novo em Vila Real que sempre o tiveram como líder carismático e com que se concertavam na luta contra o regime. Ao mesmo tempo, logrou refrear os ânimos dos promotores de algumas, esporádicas, manifestações de descontentamento e resolver a «embrulhada política» em que se vira envolvido o concelho de Sabrosa. Para prevenir males maiores em todo o distrito tratou Assis de convidar para presidente da União Nacional no distrito de Vila Real o Doutor Luís de Morais Sarmento, médico afamado em todo o distrito e professor da Universidade de Coimbra, director clínico na estância termal de Vidago e, acima de tudo, um transmontano que desenvolvia na sua terra natal, Paradela de Monforte (concelho de Chaves) uma apreciável obra de benemerência social. Para o problema mais delicado do concelho de Sabrosa, onde a respeitabilidade do regime parecia estar em crise, a acção de Assis devia passar por soluções mais delicadas. Aí confrontavam-se perigosamente três facções partidárias derivadas do regime, mas nenhuma condizente com a ordem prescrita por ele: A mais forte congregada contra o inconformado Montalvão Machado; outra, mais fraca a seu favor; uma outra, ainda mais pequena e contra ambas as anteriores, de feição nacional-sindicalista. A solução passou, sem meias medidas, pela escolha para presidente da União Nacional do concelho da Sabrosa de um «ponderado sexagenário, erudito e publicista, rico, muito respeitado por toda a gente», José Maximiano Correia de Barros, enfim uma figura de consenso, como o era Morais Sarmento a nível distrital. Para garantia de maior estabilidade ainda, entendeu Assis Gonçalves livrar-se de António Marques da Cunha, um resistente da União Republicana da linha de Brito Camacho, da presidência da câmara de Sabrosa e substituí-lo na administração do concelho por um leal «nacionalista», António Serôdio. Partiu depois Horácio de Assis Gonçalves à conquista do «professorado primário», ciente de que era dele e do clero paroquial que dependia a opinião das aldeias. Assis chegou a confessar que fora com os clérigos que aprendera a falar com o povo, e registava orgulhosamente que em Barqueiros, por exemplo, já ouvira dois operários nos seus discursos louvar Salazar.

O sentimento de confiança do governador nos seus primeiros meses em Vila Real era tal que na correspondência expedida a Salazar gabava-se das sucessivas conquistas que julgava ter obtido nos vários concelhos do distrito, primeiro em Peso da Régua, depois em Valpaços e a seguir em Alijó. O optimismo de Assis manifestou-o ele, a 5 de Julho de 1935, nos seguintes termos:

Está tudo em ordem. Não tem hoje o Governo, por certo, em todo o País, um distrito mais bem organizado, mais obediente, mais integrado nos modernos princípios do Estado.

Mas por detrás deste optimismo escondiam-se profundos desencantos que sempre acompanharam o Governador-civil. Por um lado, as dificuldades que encontrou na sua relação com o Governo Central, o qual reduzia o papel de Governador Civil a de seu mero delegado, ao mesmo tempo que a acção da União Nacional, à escala distrital, também se via diminuída. O desagrado perante esta realidade foi, aliás, partilhado por Luís de Morais Sarmento que ocupava a presidência da União Nacional. Por outro lado, devido ao inabalável caciquismo que se vira obrigado a combater nos mesmos locais em que se gabava de controlar, sobretudo em Peso da Régua e em Alijó, isto é nos concelhos do Douro-Sul onde as fortunas vinhateiras proporcionavam uma sólida base económica às oposições e que o levaram à sua desilusão acerca da mudança dos maiorais do seu distrito, Assis reiteraria uma ideia há muito feita, como se vê pelas seguintes palavras que dirigiu a Salazar:

[É um distrito] muito individualista, eivado de velhos costumes de caciquismo político, custa-lhe a adaptar-se à nova forma “corporativa e colectivista” que pretendemos imprimir à fisionomia social da Nação."

Apesar de todas as contrariedades que aqui expusemos, dos sinais de impotência manifestados por Assis no Governo Civil de Vila Real, é inegável que o Estado Novo corporativo se estabeleceu no distrito, nove anos depois da Revolução. Os resultados das eleições de 1935, ainda que com a candidatura única do general Carmona e reduzida a eleição a uma espécie de plebiscito, expressam esta realidade de um controlo que o regime logrou obter e da tranquilidade social que se seguiu, sem sobressaltos de monta, até à manhã de 25 de Abril de 1974, sobretudo nos concelhos mais politizados que eram os de Vila Real e Chaves, e mostram também que isso foi possível graças aos esforços de Assis que soube instalar o Estado Autocrático servindo-se do velho sistema liberal como meio de influência. Desagregaram-se o regime eleitoral do constitucionalismo monárquico e da República, emergiu a administração autocrática, mas tudo isso implicou a adopção de um regime de tolerância reservado aos grupos e famílias dominantes no distrito de Vila Real, em certos casos os mesmos grupos e famílias que outrora animaram o Partido Regenerador e o Republicano (Democráticos!). Tratou-se, portanto, de um processo constituído por rupturas na continuidade que aqui foram sentidas, talvez, de uma forma particularmente inédita. Terminamos com a conclusão que Rui Ramos retira, relativamente a esta questão, do seu estudo sobre o Estado Novo no distrito de Vila Real.

«O imobilismo era a chave do regime, e isso estava de alguma forma relacionado com o modo como ele se inscrevia no social.
Talvez esteja aqui o ponto de partida para começarmos a compreender porque esta parte da sociedade portuguesa que aqui visitámos – a do interior norte – se parece ter conformado durante tanto tempo à ditadura de Salazar. Talvez porque só lhe chegasse dessa ditadura um eco que quase se confundia, se bem que num contexto mais rígido e policiado, com os equilíbrios de poderes tradicionais. Monarquia constitucional, República, Estado Novo: as rupturas parecem nítidas sobretudo nas grandes cidades do litoral do País. Nos gabinetes dos ministérios, nos cafés, nas fábricas, nas rotundas e avenidas discute-se e vivem-se intensamente as mudanças. No interior, na província, representam às vezes não mais que ligeiras variantes numa terrível continuidade.»


Bibliografia: RAMOS, Rui, O Estado Novo perante os poderes periféricos: o governo de Assis Gonçalves em Vila Real (1934-39), in Análise Social, vol. XXII (90) 1986-1º, pp. 109-135.

3 comentários:

  1. Devia ser publicado em separata, este estudo.Grato a Leonel Salvado pelo seu trabalho e enpenho na divulgação da nossa memória histórica.

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  2. Tendo em conta o excelente trabalho que o meu amigo e homónimo, aliás Lelo Brito,tem feito neste mesmo sentido da divulgação da nossa memória histórica nos seus blogues que tenho seguido, sobretudo em FARRAPOS DE MEMÓRIA e OS JUDEUS EM TRAS OS MONTES só posso sentir-me honrado pelo elogio.
    Bem-haja

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  3. Com dois anos de atraso, mas sempre a tempo, penso eu de ler uma óptima e esclarecedora resenha sobre esta matéria.

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