Um caso singular e enigmático
Por Leonel Salvado
Os cruzeiros de Alvarelhos constituem efectivamente um caso curioso e, em certa medida, um caso invulgar no contexto destes monumentos de expressão religiosa popular do concelho de Valpaços, quiçá de toda a área integrada na diocese de Vila Real.
A singularidade
Como bem observou Henrique Rodrigues no post intitulado “Cruzeiros da nossa Terra” que publicou em 19 de Abril de 2010 no seu blog “Alvarelhos (Maravilhoso Reino) ”, observação essa que tive oportunidade de confirmar, nenhum dos quatro cruzeiros foi erguido no centro ou no interior da aldeia.
Como refere o autor do blog local, eles «foram colocados nos principais caminhos que eram: o caminho da Ribósia que fica a nascente e ligava a Tinhela, o caminho de Santiago que ligava a Vila Nova de Monforte e Oucidres o caminho do Seixal que vinha de Lamas de Ouriço e seguia para Tinhela e neste lugar poderia derivar para Agordela e o caminho da Serra que ligava a São Julião de Montenegro, os cruzeiros estavam colocados nestas vias.»
As possíveis origens
Adianta ainda o mesmo autor, baseado na tradição oral, que a ideia da construção dos quatro cruzeiros e sua implantação nos locais designados teria talvez resultado de uma determinação administrativa das autoridades do Concelho de Monforte de Rio Livre, isentando os habitantes da Alvarelhos das suas obrigações militares no reforço da guarda do Castelo de Monforte, acto que a aldeia inteira entendeu celebrar daquela forma.
Estamos perante uma explicação que podendo, à primeira vista, parecer demasiado rebuscada, parece fazer algum sentido se a compararmos com as escassas interpretações que se conhecem em Portugal acerca da origem desta tradição de arte e religiosidade de expressão popular, que são os cruzeiros. O padre João Parente, um dos raros autores portugueses que nos têm elucidado sobre a tradição dos cruzeiros, tradição essa que, a fazer fé neste autor, remonta ao século XIV e estendeu-se desde o Norte de Portugal, à Galiza e ao Noroeste de França, deixou-nos na sua obra “Os Cruzeiros da Dioceses de Vila Real” algumas considerações sobre o tema que julgo poderem conferir alguma credibilidade ao que se guarda na tradição popular sobre a origem e a importância dos cruzeiros de Alvarelhos. Refere este investigador:
«As aflições insuperáveis levam o povo à procura de uma protecção que só encontra em Deus. Desta necessidade de apoio especialmente centrado no crucifixo, nasceu o sentimento popular que se exprime nos cruzeiros. […] De vez em quando, as epígrafes gravadas nas bases dos cruzeiros, apresentam como motivo do seu levantamento, a devoção de particulares, sempre do baixo clero ou leigos não pertencentes à nobreza. Os nobres edificavam as igrejas ou os conventos.»
Padre João Parente, Os Cruzeiros da Dioceses de Vila Real, Media Line, Impresse 4, sd. pp. 9-10
Compreende-se que as seculares obrigações de defesa militar dos castelos da raia no decurso das temíveis guerras com Castela fossem para os habitantes de aldeias inteiras, a par das epidemias, uma dessas «aflições» e que uma vez delas apartados os povos logo procurassem agradecer a Deus o consolo que dessa bênção retiravam, erguendo-lhe um cruzeiro comemorativo que, segundo ainda o Padre João Parente, «geralmente […] erguia-se no centro do povoado.» Mas, como vimos, em Alvarelhos foram quatro e, todos eles, fora o povoado e junto dos quatro caminhos que davam (e dão) acesso à aldeia. Não parece haver nada de estranho nisto, pois esta situação só tem a ver com as circunstâncias particulares em que se crê que os cruzeiros de Alvarelhos foram erguidos. Se o grande mal que afligia os aldeões era o perigo das invasões castelhanas e se na expressão do cristianismo popular os cruzeiros representavam para eles a desejada protecção contra esse perigo, agora na sua própria aldeia, era nos caminhos de acesso a ela que o povo devia depositar a esperança dessa protecção erguendo aí as cruzes com Cristo crucificado como sinais de auxílio e misericórdia.
Tipologia e significado religioso
Devo dizer que, à falta de epígrafes gravadas nas bases dos cruzeiros de Alvarelhos indicadores do motivo da sua construção, salvo no que foi transferido para o cemitério paroquial (resta saber se o actual pedestal será, na verdade, a sua base original!), a devoção aos cruzeiros em Alvarelhos, fosse qual fosse a razão imediata para a sua construção, enquadrou-se na simples e expontânea expressão do cristianismo popular a que lhe está associada e que o Padre João Parente definiu assim:
«A arte popular cristã mostrou sempre preferência pelos sofrimentos e pela morte de Jesus, em prejuízo da Sua encarnação e ressurreição. É na cruz que se manifesta melhor a humanidade de Cristo e, de certa maneira, a divindade. A encarnação não é tão sensível e a ressurreição é demasiado espiritual e transcendente. O povo prefere a paixão, porque impressiona, comove e apela ao sentimento. Compreende-se que o crucifixo seja a imagem mais comum, tanto contemplada no esplendor das catedrais como na simplicidade dos cruzeiros das recônditas encruzilhadas.»
Padre João Parente, Os Cruzeiros da Dioceses de Vila Real, Media Line, Impresse 4, sd. Pp. 9-10
Contrastando com a profusão ornamental escultórica dos cruzeiros que, com mais frequência, foram erguidos dentro das aldeias, vilas e cidades na restante região transmontana, os cruzeiros de Alvarelhos, colocados fora do casario, destacam-se todos pela sua simplicidade (base cubóide e cruz simples de secção quadrangular) e pelas grandes semelhanças existentes entre eles. Só para que se fique com uma ideia desse contraste dentre os restantes cruzeiros existentes no concelho de Valpaços, compare-se por exemplo os cruzeiros que se localizam em “Largos do cruzeiro”, alguns dos quais já procurámos divulgar, tais como os de Argeriz, Vilartão (Bouçoais), Cabanas (Curros), Fornos do Pinhal (junto à escola primária) Possacos, etç com os mais singelos cruzeiros localizados fora das aldeias em Lamas (Ervões), Santa Valha (Senhor da Boa Morte), Deimãos (outrora resguardada por uma capela simples posteriormente reconstruída) e Tinhela, junto da estrada que sai para o Norte, cuja semelhança com os cruzeiros de Alvarelhos é flagrante, exceptuando o facto de ter sido erguido sobre rocha natural.
Convém ainda se diga que estes simples cruzeiros erguidos nas encruzilhadas dos caminhos eram policromados, isto é, pintados e repintados directamente sobre o granito, representado a figura de Cristo Crucificado, os mistérios da fé e, em alguns casos, a virgem Maria no reverso. Hoje são poucos os casos destes simples cruzeiros onde ainda se vislumbrem vestígios dessas pinturas. Como refere o Padre João Parente «era ao Senhor e à Senhora dos cruzeiros que o emigrante e o soldado lançavam o último olhar aflito, ao partirem para as arriscadas aventuras». Não seria propriamente à volta dos cruzeiros de Alvarelhos que a vida girava, se cantava e se bailava nos dias festivos, se realizavam entremezes e se jogava a panelinha e o pião. Isso sucedia sim em torno daqueles cruzeiros mais ricamente trabalhados e colocados no centro do povoado. Os cruzeiros erguidos nos principais caminhos que passavam por Alvarelhos eram aqueles, talhados no melhor granito mas em formas mais simples e representando o senhor em sofrimento e em cores vivas, que tocavam mais na alma dos pobres crentes do que os efeitos escultóricos, o sangue escorrendo-lhe das chagas. Era neste sofrimento redentor, da Paixão de Cristo, presente em pessoa nos cruzeiros dos caminhos, que os que deles se serviam em arriscadas jornadas encontravam o desejado conforto espiritual.
Como disse, não estou seguro se o pedestal que serve de base ao cruzeiro que foi transferido do antigo caminho de Santiago para o cemitério paroquial é original e será estranho que o não seja posto que nela se pode ler com relativa facilidade a seguinte mensagem epigrafada em latim, que me parece bem elucidativa do motivo ou significado da construção deste tipo de monumento, a que me tenho referido, com a indicação, na face lateral, da data de 1733:
Como disse, não estou seguro se o pedestal que serve de base ao cruzeiro que foi transferido do antigo caminho de Santiago para o cemitério paroquial é original e será estranho que o não seja posto que nela se pode ler com relativa facilidade a seguinte mensagem epigrafada em latim, que me parece bem elucidativa do motivo ou significado da construção deste tipo de monumento, a que me tenho referido, com a indicação, na face lateral, da data de 1733:
PASSIO CHR
ISTI,CONFO
RTA . ME.
Outro detalhe curioso que encontrei neste cruzeiro, ao contrário dos restantes, é que na respectiva cruz foi epigrafada a legenda INRI, o que reforça a ideia da sua relação com o tema da paixão de Cristo e o culto das cinco chagas.
Levando em conta uma sugestão apresentada pelo Padre João Parente, baseada em memórias recentes sobre esta matéria, face às grandes semelhanças existentes entre os cruzeiros de certas terras que, segundo as suas próprias palavras, «parecem ter nascido de uma só mão criadora», como se me afigura ter sido o caso dos de Alvarelhos, é possível que esse trabalho fosse exercido por canteiros ambulantes que andavam de terra em terra oferecendo a sua arte e se fixavam nas aldeias recebendo alojamento, comida e salário enquanto durasse a sua empreitada. O mesmo devia suceder, julgo eu, com os pintores que se insinuariam da mesma sorte aos aldeãos ou seriam, devido à sua fama, por estes contratados.
E o resultado foi a existência de quatro magníficos monumentos religiosos, graças à admirável fé de gente simples de Alvarelhos, monumentos esses que já foram cruzes de pedra com crucifixo pintado e hoje continuam a ser cruzes de pedra, apenas duas delas desenquadradas (uma muito mais do que outra) do seu ambiente paisagístico primitivo.
Os Cruzeiros
I
Cruzeiro do caminho da Ribósia, Alvarelhos | Foto base: Leonel Salvado, 2011
| Pseudo-azulejos (adaptação Leonel Salvado)
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Local: Fragas do Prado, ao caminho da Ribósia, Alvarelhos
Título: Cruzeiro
Material: Granito
Altura: 3,34 m, base e cruz
Descrição: Base cubóide com cruz simples de secção quadrangular
Data: Indeterminada
II
Cruzeiro do caminho do Seixal, Alvarelhos| Foto base: Leonel Salvado, 2011
| Pseudo-azulejos (adaptação Leonel Salvado)
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Local: Caminho do Seixal, Alvarelhos
Título: Cruzeiro
Material: Granito
Altura: 2,84 m, base e cruz
Descrição: Base cubóide e simples cruz de secção quadrangular
Data: indeterminada
III
Cruzeiro do caminho da Serra, Alvarelhos | Foto base: Leonel Salvado, 2011
| Pseudo-azulejos (adaptação Leonel Salvado)
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Local: no sítio das Peneda, Alvarelhos (antigo caminho da Serra – deslocado alguns metros abaixo)
Título: Cruzeiro
Material: Granito
Altura: 2, 70m, base e cruz
Descrição: Base cubóide e cruz simples de secção quadrangular
Data: Indeterminada
IV
Cruzeiro do caminho de Santiago, Alvarelhos | Foto base: Leonel Salvado, 2011
| Pseudo-azulejos (adaptação Leonel Salvado)
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Local: Cemitério paroquial, Alvarelhos (deslocado do antigo caminho de Santiago)
Título: Cruzeiro
Material: Granito
Altura: 2,70m, pedestal e cruz
Descrição: Pedestal quadrangular com soco e cornija onde assenta uma cruz simples de secção quadrangular
Data: Pedestal de 1733
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