terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Adeus, Napoleão!

A defesa mais eficaz da história é portuguesa

À força de braços, a população construiu 152 fortificações ao longo de uma centena de quilómetros. Tudo no mais absoluto sigilo e em tempo record. Objectivo cumprido: os franceses foram expulsos de vez.

Montes de terra, pedra, argamassa e alguma madeira. Aquele que é considerado o sistema de fortificações de campanha mais eficiente da história militar não impressiona à primeira vista. Não tem o ar imponente de São Julião da Barra, em Oeiras, ou de São João da Foz do Douro, no Porto. Na verdade, está mais perto do poeirento Forte Sedgwick, onde Kevin Costner assume o papel de capitão Dunbar, no filme Danças Com Lobos. As aparências iludem e as Linhas de Torres Vedras são um bom exemplo do dito popular. No Outono de 1809, perante a ameaça de uma nova invasão francesa, o general inglês Arthur Wellesley ordena o reconhecimento dos terrenos a Norte de Lisboa. A sua intenção é estabelecer um sistema defensivo para proteger a capital porque “é-lhe difícil prever por onde Napoleão irá invadir Portugal”, explica o historiador Carlos Guardado da Silva, director do Arquivo Municipal de Torres Vedras.
Wellesley decide cercar o Norte da cidade com três linhas, que reforçam os obstáculos naturais do terreno e permitem controlar os principais acessos. Os trabalhos de construção arrancam a 3 de Novembro de 1809 e, “num período inferior a um ano, constroem-se, no maior segredo, 126 obras, entre fortificações permanentes e outras de carácter temporário”, revela Ana Catarina Sousa, arqueóloga da Câmara Municipal de Mafra. Desde 2002 que a especialista se dedica ao estudo das Linhas de Torres Vedras e, por isso, sabe que o aperfeiçoamento do sistema continua até 1812, “pois esperam uma nova investida de Napoleão, o que não acontece”. No total, erguem 152 fortificações apetrechadas com 523 bocas de fogo.

A primeira linha a ser feita, embora se chame segunda, estende-se de Ribamar à Póvoa de Santa Iria, intercepta os desfiladeiros de Mafra, Montachique e Via Longa e apoia-se nas serras de Chipre, Fanhões e Serves e no Cabeço de Montachique. Estas posições têm um flanco direito frágil, pelo que se cria uma linha mais para Norte, a primeira. Situa-se a 13 quilómetros da segunda e liga Alhandra à foz do rio Sizandro, em Torres Vedras. Ana Catarina Sousa acrescenta que “os flancos de ambas são reforçados por flotilhas de navios ingleses, que constituem verdadeiras batarias flutuantes”.
Quando as tropas francesas chegam às linhas, a 11 de Outubro de 1810, encontram uma terra estéril e o exército aliado atrás de uma posição impenetrável. O factor surpresa é fundamental. Consta que o general Massena fica furioso quando tem conhecimento das fortificações de campanha, bem guarnecidas de artilharia. A 4 de Março de 1811, os franceses batem em retirada, o que permite, como sublinha Guardado da Silva, “manter o reino de Portugal fora do jugo do império napoleónico”. As linhas “marcam o início da queda de Napoleão, cujo desfecho se dá em Waterloo, assim como a reviravolta da Guerra Peninsular, que termina em 1814, em Toulouse”.

Aproveitar a natureza

A história tem vários modelos de sistemas defensivos que constituem verdadeiros marcos de engenharia e de arquitectura. É o caso da Grande Muralha da China, do Muro de Adriano, da Linha Siegfried ou da Linha Maginot. A grande diferença é que o de Torres Vedras foi bem sucedido e os outros não. Ainda para mais, o êxito não se deve a uma construção humana poderosa, mas ao aproveitamento inteligente do relevo e da hidrografia da região para garantir que o progresso da marcha do adversário fosse muito lento. As linhas reforçam os obstáculos naturais do terreno através de redutos e baterias, mas também de escarpamentos que consistem na remoção das terras das encostas dos montes para aumentar o declive. O acesso natural torna-se impossível. Só com o recurso a escadas e cordas, o que dificulta a manutenção da formação de ataque e diminui o ímpeto da investida. Os abatises, isto é, os obstáculos feitos com árvores derrubadas voltadas para o inimigo, impedem um assalto, assim como as paliçadas, que consistem em fileiras de estacas pontiagudas.
A construção de estradas para ligar as 152 fortificações, de redutos de peças de artilharia e de um sistema de comunicações telegráficas e a enorme extensão das linhas também justificam a eficiência do sistema. Um misto de natural e artificial que forma uma barreira delimitada pelo Atlântico e pelo Tejo, construída no maior secretismo. Um silêncio que muitos especialistas consideram ser decisivo para o sucesso. Ana Catarina Sousa afirma que “nem mesmo os governantes de Inglaterra ou Portugal sabiam da empreitada”.
O general Massena alcança as linhas mais tarde do que os engenheiros militares e o próprio Wellesley prevêem, o que lhes concede muito tempo para construir e até aperfeiçoar o sistema através de obras hidráulicas para inundar toda a zona baixa das lezírias. O terreno desde Alverca até ao Norte de Alhandra fica “intransitável”, na descrição do chefe do Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar, tenente-coronel José Paulo Berger. Ao longo do leito do rio Sizandro, a jusante de Torres Vedras, “as inundações, que inicialmente foram resultado das condições atmosféricas naturais, tornam impossível a transposição do rio durante o Inverno”, acrescenta.
Para que esta condição se mantenha durante a invasão, “constroem diques sucessivos até à foz, protegidos pelo tiro das batarias de artilharia, que estão ao longo da margem esquerda”. Segundo José Berger, estes trabalhos defensivos proporcionam “condições de protecção e de resistência às tropas menos treinadas”. É o caso do exército anglo-luso, maioritariamente composto por milícias e ordenanças (voluntários).
Ao mesmo tempo, asseguram “um maior equilíbrio face à experiência detida pelos veteranos soldados franceses”, que, na opinião do militar, são “as melhores tropas da Europa e dispõem de mais efectivos, o que lhes permite atacar, simultaneamente, pelo Norte e pelo Sul do Tejo”. O tenente-coronel frisa que, ao contrário dos vários sistemas defensivos referidos, as Linhas de Torres Vedras “não são fortificações contínuas”. Pelo contrário, “constituem posições descontínuas, ligadas à retaguarda por um conjunto de estradas militares; só os seus pontos importantes são fortificados e as obras defensivas não são de carácter permanente”.
Na história escrevem-se mais dois aspectos. O primeiro é “não ocorrer nas linhas uma grande batalha, o que só releva o seu papel”, argumenta Guardado da Silva, que as estuda há quatro anos. O segundo é que a construção não foi cara. De acordo com uma carta de João Paulo Bezerra, ministro plenipotenciário português em Londres, datada de 1817, custaram exactamente 255.793 libras esterlinas. À cotação actual do euro e da libra, qualquer coisa como 300 mil euros.

Engenhar, esconder, queimar

As linhas são feitas por engenheiros militares e estão em conformidade com os avanços da época. Dois factos provados através da observação da planta dos fortes e do recurso a certos materiais, como a taipa militar, que absorvem melhor os tiros de artilharia. Há quem defenda que a construção foi aleatória, basea­da nas necessidades do momento e nos materiais existentes, devido ao facto de os ­paióis dos fortes serem todos diferentes. Porém, Jessica Levy Represas, directora científica dos trabalhos de campo de Sobral de Monte Agraço, contraria a ideia e defende que “alguns aspectos são, manifestamente, estudados e realizados com muito cuidado”. Por exemplo, “todos os paióis têm bons sistemas de drenagem que garantem que a água não entre na câmara e inutilize as munições”.
No decorrer das intervenções arqueológicas no Forte da Casa, em Vila Franca de Xira, entre 2008 e 2010, a equipa detecta um complexo sistema de canalizações. João Pimenta, arqueólogo deste município, desvenda que as águas são conduzidas, “através de caixas de derivação dos diversos caneiros, para uma conduta comum que as expele directamente para o fosso da fortificação”. Nesta escavação foram detectadas, na posição original, diversas peças de cantaria em calcário. “Estes elementos referenciados à superfície em diversos fortes correspondem a canalizações e caixas com função de decantação e derivação das águas”, explica Pimenta. “Alguns destes elementos, face ao seu material de construção, podem ter chegado pré-fabricados ao local, o que antevê uma verdadeira linha de montagem de matérias-primas para estas edificações”, acrescenta.
Os paióis têm outros segredos que revelam complexidade, na convicção de Jessica Levy Represas. “Uma estrutura inteiramente de pedra é muito mais perigosa em caso de explosão; o talude de terra amortece o impacto, pelo que faz todo o sentido essa escolha”, fundamenta. O tenente-coronel José Berger destaca que a pedra é usada “só nas estruturas resistentes dos paióis, que depois também eram cobertas de terra” e “na construção dos muros de contenção dos taludes dos fossos”. Outro dado que revela a sofisticação dos paióis é o posicionamento dos corredores de acesso em relação às câmaras de armazenagem da pólvora, pois evita que os estilhaços atinjam as tropas aliadas.
Há mais detalhes que mostram mestria. Por exemplo, um elemento básico sempre presente é o parapeito, como lembra José Berger, “com a altura suficiente para proteger os defensores dos tiros da artilharia; e um fosso com a largura suficiente para servir de obstáculo aos atacantes”. A configuração também não foi ao acaso. “A forma de estrela permite a defesa dos flancos sobre os fossos, bem como fazer fogo cruzado”, diz Guardado da Silva.
José Berger resume as outras características dos fortes: “Alguns são apenas guarnecidos por infantaria, outros estão dotados de canhoneiras; também dispõem de paióis e de outras obras defensivas acessórias, como escarpamentos.” Cada um é reforçado com um fosso de cerca de cinco metros de largura e três de profundidade. Podem ter também esplanadas. Assemelham-se a pequenas planícies e servem para as tropas se juntarem e retirarem sem entrar em desordem.
“Todos os fortes guardam segredos, pois embora tenham uma arquitectura semelhante estão adaptados ao terreno, ao meio envolvente e aos objectivos defensivos que perseguem.” A afirmação é de Ana Catarina Sousa, que acrescenta que em cada um deles se encontram especificidades “como o posicionamento das peças de artilharia, nos Fortes da Carvalha e da Arruda, ou a orientação e a protecção das entradas, como no Forte da Malveira”. Há elementos construtivos únicos como o túnel do Forte do Zambujal, no concelho de Mafra, ou o posto de comando do Forte do Alqueidão,em Sobral de Monte Agraço.
O sucesso das linhas deve-se a muita astúcia, mas também a uma política de queimada e de desertificação que garante uma maior defesa. A partir de Almeida, vila do actual distrito da Guarda onde começa a terceira invasão, Massena encontra um país silencioso, com terras desertas e desoladas. Um ofício seu para Berthier, chefe do Estado-Maior francês, de 23 de Setembro de 1810, revela o seguinte: “Atravessamos um deserto, nem uma alma se encontra, tudo foi abandonado. Os ingleses levam a sua barbárie até ao fuzilamento do pobre que permanecesse em sua casa, mulheres, crianças, idosos, todos fogem, não se encontra um guia em nenhum lado.” A descrição corresponde a “uma estratégia montada por Wellesley, com o apoio da regência”, conta Guardado da Silva. O historiador explica que os franceses usam a táctica de se abastecerem no terreno e que Wellesley sabe disso, pelo que “impõe no território português, sobretudo de Coimbra até às Linhas de Torres Vedras, a política de terra queimada”. Ou seja, “a população é obrigada a esconder ou destruir os produtos das colheitas que não consegue transportar consigo, a deixar as suas casas e a refugiar-se no interior das linhas”. Tudo para “privar o invasor de recursos”, a pior situação que pode acontecer a qualquer exército, “obrigando-o a morrer de fome”.
A população adere forçada à ideia. Na época, vive-se da agricultura, especialmente do resultado das colheitas armazenadas para o ano todo, pelo que “não se destrói de ânimo leve o que tanto custa a ganhar”, justifica o historiador. Aliás, há relatos, sobretudo de franceses, que provam que alguns populares tentam esconder os seus bens na esperança de os reaver mais tarde. Guardado da Silva confirma e acrescenta que “os soldados de Napoleão acabam por encontrar esses cereais ora emparedados, ora enterrados”. Outras vezes, o inimigo consegue cereais à força, o que “instiga ainda mais os povos à revolta”.

São Vicente é mais avançado

O tenente-coronel José Berger defende “que o sistema funciona pelo seu conjunto” e que a cada forte cabe uma função. No entanto, dentro da estratégia, uns são mais importantes do que outros. Na primeira linha de defesa, os pontos-chave são Torres Vedras, Sobral de Monte Agraço e Alhandra. Os dois primeiros são os maiores do sistema defensivo.
O Forte de São Vicente, em Torres Vedras, é o mais avançado, porque defende a estrada litoral entre Coimbra e Lisboa. Para o leigo, conforme reconhece Guardado da Silva, é também o que “mais enche o olho”. José Berger descreve que um ataque por esta zona “pode visar não só o torneamento da sua posição defensiva como também o isolamento do exército anglo-luso das suas bases”. É certo que Wellesley considera esta hipótese. Prova disso é que o forte está rodeado por um muro perimétrico com cerca de 1500 metros e comporta uma guarnição de 2200 homens e 39 peças de artilharia. Possui ainda um posto telegráfico. Guardado da Silva afirma que o reconhecimento da importância da defesa de Torres Vedras para a protecção da capital se nota, inclusivamente, na origem do nome destas linhas.
O Forte do Alqueidão, em Sobral de Monte Agraço, é o ponto mais elevado do sistema, a 439 metros, e o seu ângulo de visão cruza as duas linhas de defesa. Dali é possível visualizar o Tejo, o Atlântico, a Serra do Socorro, Torres Vedras, Montejunto, Arruda dos Vinhos, Bucelas e Loures. A sua missão estratégica, na qual colaboram os restantes fortes implantados na Serra de Monte Agraço, é impedir o acesso do exército inimigo a Lisboa pela estrada de Bucelas. A ocupação desta região permite também impedir que se divida a posição de defesa. Por tudo isto, “Wellesley visita este forte com frequência, para dar as ordens directamente daquele ponto”, afiança a responsável pelo projecto das Linhas de Torres na Câmara de Sobral de Monte Agraço, Sandra Oliveira.
Aliás, desvenda um segredo do Forte de Alqueidão: “Tem uma estrutura que não foi encontrada em nenhum dos outros e que, à partida, é a casa do governador da praça, ou seja, o general que comandava a posição defensiva.” Os especialistas baseiam esta ideia no facto de não ser uma estrutura militar, pois tem telha. A responsável acrescenta mais um pormenor, até há pouco tempo secreto: os arqueólogos “encontraram uma porta mas ainda não a sondaram”. Para já, não se sabe o que esconde.
Da Serra de Serves até ao Tejo, o terreno desce gradualmente e apresenta condições muito favoráveis ao atacante. Wellesley preocupa-se com esta questão, pelo que organiza uma posição avançada em Alhandra e “torna-a incontornável mediante uma ligação com a posição principal”, nas palavras do tenente-coronel José Berger. Por fim, este especialista elege as regiões de Alrota, no concelho de Loures, e da Enxara, no de Mafra. Ambas “estão dotadas de fortes específicos para proteger a retirada das tropas ocupantes das fortificações de Torres Vedras e do Sobral de Monte Agraço para a posição principal”.
A construção das estradas militares é o factor que falta justificar. É indesmentível que elas fazem que tudo o resto resulte, pois permitem a deslocação das tropas para qualquer ponto das linhas com a rapidez e o sigilo necessários. “Em conjunto com os transportes, eram fundamentais para a manutenção permanente do sistema de abastecimentos do exército anglo-luso”, conclui o militar. Nesta época, são basicamente de terra e areia, com grandes massas de pedras soltas ou mal pavimentadas. A sua construção segue o modo, os métodos e a tecnologia praticados pelos romanos.

Estruturas de madeira

As linhas estendem-se por 88 quilómetros e atravessam seis concelhos: Arruda dos Vinhos, Loures, Mafra, Sobral de Monte Agraço, Torres Vedras e Vila Franca de Xira. Para gerir este vasto património, em 2006, os municípios constituíram a Plataforma Intermunicipal para as Linhas de Torres (PILT).
Ana Catarina Sousa conta que, em 2002, fez-se um rastreio do estado de conservação de todos os fortes. “Com base no diagnóstico, foram seleccionados 30 para integrar, numa primeira fase, a Rota Histórica das Linhas de Torres, e 22 estavam bem conservados.” O objectivo é recuperá-los, como já aconteceu ao do Zambujal, ao de São Vicente, ao de Alqueidão e ao da Casa, entre outros. Até 2012, as escavações chegarão a mais dez fortes de diversos concelhos. Para além deste conjunto, “prevê-se o alargamento a outros, como sucede no Forte do Juncal, em Mafra, feito com a colaboração da Escola Prática de Infantaria e da Engenharia Militar”, detalha a arqueóloga. O Exército também tem um plano para recuperar os fortes que ainda se mantêm sob a sua responsabilidade.
O trabalho de arqueologia nas linhas traz uma novidade: a recuperação de estruturas em madeira. Em Portugal, confirma Ana Catarina Sousa, “são raros os contextos arqueológicos com este nível de conservação”. Os trabalhos nos fortes do Zambujal, Cego, Carvalha, Arpim, Ajuda Grande e Feira revelaram paliçadas e plataformas para as peças de artilharia. Os primeiros vestígios surgiram em Julho de 2009, no Zambujal, e, actualmente, “estão em curso análises para determinar as espécies das madeiras utilizadas”. Os investigadores acreditam que, provavelmente, serão detectadas mais em futuras escavações.
O antigo telégrafo da Serra do Socorro está reconstituído à escala natural e com o sistema utilizado em 1810 para transmitir mensagens entre o centro de comando e as diversas fortificações das linhas. Graças à documentação histórica, às evidências arqueológicas, à colaboração do Museu de Marinha e ao trabalho de Rui Sá Leal, comandante da Marinha em situação de reforma, de Isabel Luna, da Câmara de Torres Vedras, e de Ana Catarina Sousa. Os materiais de construção naval e as técnicas empregues correspondem ao uso da época.
No caso dos escarpamentos localizados em Loures – Ribas, Picotinhos e Serves –, Florbela Estevão, arqueóloga do município, confessa que o estado de conservação “não é o melhor”: “A sua extensão e a sua dispersão por diversos proprietários privados dificulta as acções de conservação.” Apesar de, em alguns pontos, se apresentarem um pouco arruinados, são de fácil reconstrução, uma possibilidade que depende do financiamento.
Para dinamizar a recuperação do património, os municípios estão a apostar na criação de centros interpretativos. Até ao final deste ano, em Sobral de Monte Agraço, será aberto um. Em 2011, Loures e Mafra inauguram os seus. Torres Vedras concluirá o seu em 2012. Já em funcionamento está o de Arruda dos Vinhos.

C.O.E.
Para saber mais
http://www.rhlt.com.pt/ Páginas da Rota Histórica das Linhas de Torres.

Quatro linhas

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o sistema não é composto apenas por duas linhas. Na verdade, são quatro. O engenheiro principal, tenente coronel Fletcher, comunica, a 15 de Outubro de 1809, que a pequena baía a Leste de São Julião, em Oeiras, é o único local onde um pequeno destacamento de retaguarda pode cobrir o embarque de todo o exército inglês no caso de ser obrigado a retirar de Portugal. Wellington aceita o conselho e manda erguer a terceira linha defensiva, com três quilómetros de extensão, que liga Santo Amaro de Oeiras ao Forte do Junqueiro, aproveitando as fortificações pré-existentes e fazendo mais redutos.
Com uma extensão de 7,5 quilómetros, entre a Mutela, em Cacilhas, e o Alto da Raposeira, na Trafaria, cria-se uma quarta linha. “A posição na Margem Sul do Tejo tem como funções garantir a segurança no momento de um eventual embarque e controlar a acção do inimigo na Península de Setúbal”, explica a arqueóloga Ana Catarina Sousa.

Resistir três vezes e vencer

As invasões francesas ocorrem entre 1807 e 1811 porque Portugal não adere ao bloqueio continental, a ordem do imperador Napoleão para fechar os portos aos ingleses, que eram o maior obstáculo à expansão territorial de França. Em Novembro de 1807, as tropas comandadas pelo general Junot invadem o país. Muitos camponeses são assassinados e as aldeias saqueadas, mas a família real muda-se para o Brasil para estabelecer aí a capital do reino e conservar a independência. Inglaterra ajuda a vencer algumas batalhas e força Junot a assinar um tratado de paz e a retirar.
Napoleão não desiste e em 1809 manda o general Soult invadir uma segunda vez, mas a resistência é grande. Na batalha do Douro, as tropas luso-britânicas vencem os franceses, sob o comando do general Arthur Wellesley e do marechal Beresford. Depois desta tentativa, torna-se indiscutível que Napoleão quer dominar Portugal e, principalmente, o porto de Lisboa. De facto, o general Massena entra pela fronteira da Beira, conquista a praça-forte de Almeida, a 28 de Agosto de 1810, e planifica um novo movimento de marcha até Lisboa para ocupar a capital. As linhas de Torres foram alcançadas pelos franceses entre 11 e 13 de Outubro de 1810. Apesar de contarem com mais armamento, não conseguem ultrapassá-las.
Para além de o sistema defensivo ser muito eficaz, o historiador Carlos Guardado da Silva revela que o exército aliado tem outra vantagem: os franceses estão divididos. “Junot e Ney não reconhecem a autoridade e o comando de Massena; o grande erro de Napoleão foi colocar ambos sob o comando de Massena.”

Telegrafia de guerra

Para que as linhas funcionem na perfeição, o exército aliado tem de estar a postos para acorrer a qualquer posição atacada pelo inimigo. Porém, como sublinha o tenente-coronel José Paulo Berger, “os seus movimentos dependiam da rapidez, eficácia e segurança da difusão das ordens dentro da posição”. Assim, torna-se necessário um sistema que funcione em terra, que permita que as fortificações das Linhas de Torres e os seus flancos laterais comuniquem entre si, mas também com os navios ingleses fundeados no Tejo e na costa atlântica. Na Serra do Socorro, concelho de Mafra, instala-se uma estação de comunicações, que transmite para oito fortes, onde existem mastros de sinais.
De início, a central parte do sistema usado pela Marinha inglesa. José Berger esclarece que “consiste num conjunto de balões e bandeiras que se hasteiam numa verga cruzada num mastro; a ordem relativa à sua colocação compõe um número, que por sua vez corresponde a uma expressão ou frase previamente definida no código”. Mais tarde, o sistema inglês é substituído pelo telégrafo português. José Berger dá dois motivos para a mudança. Em primeiro lugar, “a pouca capacidade de aumento dos óculos e lunetas utilizados para a observação face à distância existente entre os vários postos de sinais”. Em segundo, “a dificuldade causada pelo vento que fustiga as posições altas”.

Paisagismo militar

O historiador britânico Patrick Wilcken dedica alguns parágrafos do seu excelente Império à Deriva – A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821 (Civilização Editora, Lisboa, 2004) à linha de defesa imaginada por Wellesley. O livro narra a inédita aventura da transferência de uma corte europeia para uma das suas colónias, com todos os sobressaltos que isso significou de ambos os lados do Atlântico. Embora discutível na sua interpretação do protagonismo inglês em toda a operação, é um notável retrato da época e da ambiguidade com que foram recebidos, primeiro, os ideais da Revolução Francesa e, depois, as tropas invasoras. Excertos do livro de Wilckens sobre as Linhas de Torres:
“Em Portugal, Wellesley empreendia uma das mais elaboradas estratégias a longo prazo das guerras napoleónicas. As regiões rurais situadas num raio de cinquenta quilómetros em volta de Lisboa foram evacuadas. Contratou dez mil camponeses portugueses que, sob as ordens e instruções de uma equipa de engenheiros britânicos, começaram a moldar a paisagem numa série de intrincadas defesas: muraram vales, escarparam colinas, desviaram água de rios para formar pântanos, fizeram aterros e fortificações que produziram subtis mas decisivas mudanças na topografia. Aos poucos, uma série de estruturas defensivas emergiu no campo – três arcos concêntricos, que se tornariam conhecidos por Linhas de Torres (Vedras), impedindo qualquer ataque por terra a Lisboa. Wellesley teve mais tempo do que esperava e a cada mês que passava as linhas ganhavam novas protecções, postos de observação e fortificações. Foram construídos mais de cem redutos, ligados por um sistema de semáforos que permitia enviar mensagens em poucos minutos por toda a linha. Numa dada fase, existiu mesmo o plano de construir um canal artificial que permitisse a entrada de transportes oceânicos até ao interior do território.
“Os portugueses mostraram-se de início cépticos relativamente a estes trabalhos – as defesas, especialmente as mais interiores, pareciam concebidas para facilitar a fuga em caso de nova invasão francesa da cidade. Mas com as obras a expandir-se para o exterior, a confiança regressou e as linhas tornaram-se uma espécie de atracção turística para excursionistas da cidade.
“Os historiadores militares têm-se maravilhado com a sofisticação técnica das linhas de defesa de Wellington e com a combinação criativa da paisagem e fortificações construídas utilizada para defender Lisboa dos franceses. Verificou-se, porém, outra faceta menos edificante em toda esta operação, uma vez que as Linhas de Torres Vedras envolveram destruição em larga escala. Equipas de trabalho lideradas por ingleses demoliram quintas, cortaram estradas e arrasaram florestas. ‘Não poupámos casa, jardim, vinha, bosque ou propriedade privada de nenhum tipo’, comentou o Major John Jones, um dos supervisores. Não foi por isso surpresa que se registassem protestos por parte daqueles que perdiam não apenas os seus bens e meios de subsistência mas também toda a zona envolvente. Alguns habitantes pediram com tal veemência ao Major Jones que não abatesse uma bela alameda de árvores muito antigas, que ele cedeu. A prorrogação, no entanto, foi evidentemente de curta duração: ‘Como possuo homens de confiança com machados prontos no local, não há dúvidas de que serão abatidas a seu tempo.’ "

O sistema também falava português

Os estudos para a construção das linhas de defesa de Lisboa, de acordo com o historiador Carlos Guardado da Silva, são partilhados por franceses e portugueses. Nas primeiras invasões, o general Junot encarrega o coronel de engenharia Vincent de estudar a defesa da capital. Na sequência desse trabalho, o engenheiro português Neves Costa, antigo colaborador de Vincent, descreve pormenorizadamente o terreno a Norte da cidade e indica as posições que oferecem vantagens ao exército defensor. A Arthur Wellesley, o futuro duque de Wellington, cabe a ordem de construção da estrutura defensiva.
Richard Flectcher assume o cargo de engenheiro responsável, mas, a partir de Julho de 1810, John Thomas Jones substitui-o na função. Na sua memória sobre os aspectos relacionados com a direcção dos trabalhos, Jones garante que nunca houve mais de 17 engenheiros a trabalhar em simultâneo nas linhas: onze ingleses, quatro portugueses e dois naturais da cidade de Hannover (na actual Alemanha). Dispunham de 18 sargentos de construções e de 150 soldados, na maioria artífices, para as executar. Os segundos estavam sob o comando de um capitão estabelecido em Mafra e de um oficial que estava em Alhandra. Guardado da Silva destaca que durante os trabalhos nunca houve actos de insubordinação e que é justo dizer que o resultado se deve mais aos hábitos regulares e ao zelo que os portugueses mantinham do que “à eficácia da direcção exercida sobre eles”.

SUPER 151 - Novembro 2010

4 comentários:

  1. Caro Sérgio:
    Tenho de confessar que fiquei maravilhado por esta extraordinária compilação sobre a batalha de Linhas de Torres Vedras! Um documento com todos os condimentos para afogar as mágoas do presente, olhando para a lição que nos ficou dos nossos grandiosos Antepassados; para, ao menos, vislumbrarmos, à distância, a nossa hoje fugidia portugalidade. Naquele tempo, afinal, quanto mais parecia ser a ameaça do perigo francês, maior era o sacrifício e a coragem dos populares, a disciplina militar e a destreza logística, muito embora sob as ordens dos oficiais aliados. Não importa que muitos fugissem e que outros manifestassem algum cepticismo. Muitos outros ainda tiveram engenho e coragem para lutar e ganhar a salvaguarda do seu património natural – a antiga alameda de árvores, que foi poupada! Uma lição para os ecologistas e defensores do património histórico – como ganhar uma guerra sem perder o sentido do dever de proteger o património público.

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  2. Na revista Super Interessante de Novembro de 2010, salvo erro, vem um excelente artigo sobre o assunto. Contava fazer um texto sobre o assunto e o artigo em causa. Em princípio irei fazê-lo na mesma, e seguramente terei aqui o blogue do clube de história de Valpaços como mais uma referência a citar. Obrigado pela partilha!

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  3. salvo erro? é um copy do artigo amigo Micael...

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  4. Um copy, efectivamente! Mas o responsável pela reedição do artigo não menciona a fonte?

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