Milhares de supostas bruxas (e bruxos) foram torturadas e condenadas a morrer na fogueira pela Igreja e por tribunais civis, apoiados no medo e na superstição. Aconteceu numa Europa Central assolada pelas guerras religiosas e fustigada pela fome e pela doença. De pé no pátio do castelo, um acusado de bruxaria aguarda o veredicto. O toque dos sinos é lúgubre. “São verdadeiras as acusações?”, pergunta o alcaide ao réu. Com um quase inaudível “sim”, o homem admite aquilo que o obrigaram a confessar. Sabe que, se desmentir, voltará ao cárcere e será submetido a novas torturas. O cura profere um sermão sobre a bondade divina e a férrea determinação que os fiéis devem manter contra as artes demoníacas. Depois, o escrivão lê a sentença e o preso é entregue ao carrasco. Todo o povo está presente, incluindo crianças. Após a execução, as personalidades importantes dirigem-se ao salão do castelo para o banquete, pago com os bens da vítima. Era assim, na forca ou nas chamas purificadoras da fogueira, que a cidade helvética de Neuchâtel acabava com os seus bruxos e bruxas. A Suiça possui a duvidosa honra de ser o país com mais vítimas acusadas de bruxaria em relação à respectiva população: uma por cada 250 habitantes. Um total de 4000 pessoas foram condenadas e assassinadas porque legisladores, juízes, políticos, curas e intelectuais consideravam que tinham estabelecido um pacto com o diabo. Comparativamente, Portugal, com uma demografia semelhante, apenas executou quatro cidadãos durante os três séculos que durou a caça às bruxas. Em termos absolutos, é a Alemanha que leva a palma, com 25 mil condenações à morte, seguida da comunidade da Polónia-Lituânia (dez mil). No período que vai de 1450 a 1750, “a degradação esmagou a honradez, as paixões mais baixas foram camufladas com a cobertura da religião e o intelecto do homem desculpou selvajarias; a bruxaria destruiu os princípios da honra e da justiça”, opina o historiador britânico Rossell Hope Robbins. Tem razão: em Inglaterra, um juiz do Supremo Tribunal fechou os olhos ao perjúrio evidente cometido por uma testemunha de acusação; na Alemanha, um magistrado, rejeitado por uma mulher a quem fizera propostas desonestas, acusou a irmã de ser bruxa, torturando-a e queimando-a na fogueira nesse mesmo dia; em Boston, uma pobre imigrante que só falava gaélico irlandês e rezava em latim morreu na forca por não saber dizer o Pai Nosso em inglês.
De curandeiros a demónios As supostas bruxas (80 por cento das vítimas eram do sexo feminino) não eram como aquelas velhas corcundas e desdentadas que preparam poções nos contos infantis. Aos olhos de leigos e clérigos, estas damas diabólicas pertenciam a uma poderosa organização que trabalhava sem descanso para subverter a religião e pôr fim ao reino de Deus. A brutal mudança de percepção surgiu no Renascimento. Anteriormente, os bruxos faziam parte da rede social e “a feitiçaria correspondia ao desejo de dominar a Natureza em quatro aspectos principais: a saúde, o sexo, o conhecimento do futuro e a ambição económica”, afirma Joseph Pérez, historiador da Universidade de Bordéus (França). Habituais no meio rural, os feiticeiros desempenhavam o papel de curandeiros, dada a escassez de médicos, e viviam da venda de poções naturais e amuletos da sorte. Sem preparação intelectual, os seus conhecimentos sobre as plantas decorriam da tradição e da experiência; eram autênticos depositários da cultura popular. Porém, tudo isso mudou no século XV. A Europa fora arrasada pela peste negra e, em 1494, surgiu uma nova epidemia que iria atingir um milhão de cidadãos: a sífilis. Entretanto, reis e governantes mergulhavam os seus países num ciclo constante de conflitos. À Guerra dos Cem Anos (1337–1453), entre a França e a Inglaterra, seguiram-se sangrentos confrontos entre católicos e protestantes e a Guerra dos Trinta Anos, que devastou a Europa Central entre 1616 e 1648. A tudo isso é preciso somar períodos de seca e de fome, óbitos por falta de higiene, etc... Um cenário desolador para uma população dominada pelo receio de penúrias e desastres aparentemente sem explicação. Nesse contexto, a Reforma religiosa serviu de trampolim para eliminar os vestígios de paganismo que subsistiam no meio rural e serviam de alimento à feitiçaria. Em vez de reciclar as velhas crenças, como fez o cristianismo primitivo, tanto católicos como protestantes decidiram atacá-las e declará-las uma herança de Satanás. Lutero defendeu que se queimasse os seus praticantes, e os luteranos estenderam por toda a Alemanha a caça à bruxas, enquanto o calvinismo impôs na Escócia, em 1563, a primeira lei antibruxaria.
Sinistras criaturas Por se tratar de um conceito ideológico difícil de demonstrar, a bruxaria foi declarada crimen excepta, delito excepcional não abrangido pelas garantias processuais. Constituía uma traição a Deus e devia ser, como tal, severamente punida: “Nenhum castigo que impunhamos às bruxas, mesmo que seja assá-las e cozê-las em lume brando, será excessivo”, escrevia Jean Bodin, jurista francês do século XVI. Este indivíduo demonstrou o seu fanatismo no livro Demonomania dos Bruxos (1580), no qual deixou escritas pérolas como “há que obrigar as crianças a testemunhar contra os pais”, “a suspeita é suficiente fundamento para a tortura” ou “nunca se deve absolver uma pessoa depois de ter sido acusada”. No seu entender, a melhor maneira de infundir temor a Deus era com “ferros ao rubro para arrancar a carne putrefacta”. Como se tivessem lido Bodin, as filhas do latifundiário inglês Robert Throckmorton destruíram para sempre a vida da família constituída por John e Alice Samuel e pela sua filha Agnes, seus vizinhos na povoação de Warboys. Esses monstrinhos, liderados por Jane, de dez anos, fingiam ataques de epilepsia quando Alice surgia e conseguiram convencer os juízes, com o apoio de um médico de Cambridge, de que esta lhes lançara uma maldição. As meninas acusaram igualmente a família Samuel de ser responsável pela morte de Lady Cromwell, casada com o homem mais rico de Inglaterra e conhecida dos Throckmorton. John, Alice e Agnes foram declarados culpados de assassínio por feitiçaria. O chamado “caso das bruxas de Warboys” contribuiu para impulsionar a lei de 1604 que estabelecia a pena de morte para a bruxaria. Em França, o fenómeno esteve mais associado ao sexo. O episódio das freiras de Luoviers, na Alta Normandia, deveu-se aos excessos do capelão de um mosteiro de irmãs franciscanas da ordem terceira. Quando a jovem Madeleine Bavent ingressou, em 1623, descobriu que o pai espiritual do convento era adepto de uma heresia que defendia que se devia adorar Deus sem roupa, como Adão e Eva. “As monjas despiam-se e dançavam na sua frente. Ele obrigava-nos a dar abraços voluptuosos; testemunhei a circuncisão num falo enorme que algumas monjas agarraram em seguida para satisfazer os seus caprichos”, escreveu Madeleine. Ela negava-se a participar em tais práticas, mas o cura Mathurin Picard violou-a e deixou-a grávida. As orgias prosseguiram até 1642, quando a morte de Picard desencadeou a histeria. Receosas de que tudo fosse descoberto, 14 das 52 freiras do convento começaram a fingir possessão demoníaca e acusaram Madeleine de as ter enfeitiçado. Esta foi torturada e condenada à prisão perpétua numa masmorra insalubre, onde recebia apenas pão e água de três em três dias. Em 1647, não conseguiu resistir mais e morreu na prisão. O desfecho teria sido outro se os juízes franceses tivessem visto o que aconteceu no Convento das Beneditinas de São Plácido, em Madrid, em 1628. Entre os seus muros, o diabo ter-se-ia apoderado de 25 freiras. Todavia, o inquisidor Diego Serrano comprovou que não estavam possessas, mas eram doentes mentais: não necessitavam de exorcismos, mas de cuidados médicos. Francisco Garcia Calderón, confessor do mosteiro, foi preso por manter relações sexuais com as religiosas. “Não devemos, senhor, estar com rodeios neste assunto: não houve, nem há, outros demónios que não sejam os frades”, escreveu Serrano, com lucidez, ao inquisidor-geral. A bruxomania instalou-se durante dois séculos na mente de clérigos, juízes, governantes e filósofos, os quais sufocaram na forca e na fogueira o espírito crítico de que costumavam fazer gala. A ciência incipiente que chegava pela mão de Galileu e Newton foi substituída por uma assombrosa credulidade. Como podiam pessoas instruídas acreditar em semelhantes disparates? O magistrado papal Paulo Grillandi chegou a explicar por que motivo uma bruxa, alegadamente capaz de mudar de forma e de passar pelo buraco de uma fechadura, não podia escapar da prisão: “Já que o demónio se apoderou dela, Satanás deseja que seja executada, pois assim não poderá arrepender-se e livrar-se do demónio.”
Um recurso financeiro Joseph Pérez aponta o dedo ao velho fascínio humano pelo demoníaco, mas também não nos devemos esquecer de que a bruxaria era um óptimo negócio. Como os tribunais do início do século XVII tinham de ser auto-suficientes, os condenados por feitiçaria (ou os seus familiares) pagavam do seu bolso cada acto de punição e cada banquete dos juízes, mesmo aqueles que eram declarados inocentes, como aconteceu, em 1676, com a alemã Chatrina Blanckenstein, a qual foi brutalmente torturada com empolgadeiras (que esmagavam os dedos das mãos e dos pés), no potro, com cunhas e com cordas de esfolar. Apesar disso, a mulher não confessou e o processo foi suspenso, mas não sem antes ter de pagar as custas do seu calvário. Não é de estranhar que, na Alemanha, onde os bens eram confiscados de forma sistemática, se tenham instaurado processos contra mulheres abastadas. Quando Fernando II (1578–1637) proibiu as confiscações por considerá-las um negócio sujo, o número de execuções diminuiu. Mesmo assim, houve casos notórios, como o do burgomestre de Bamberg, Johannes Junius, vítima da caça às bruxas promovida pelo eleitor da Saxónia, João Jorge II, o qual ordenou que se queimassem vivas cerca de 600 pessoas. Em 1628, antes de morrer na fogueira, Junius escreveu à filha para lhe contar como sofrera o suplício da polé, e como o carrasco lhe rogava para confessar algo, mesmo que fosse inventado, pois não parariam até admitir que era bruxo. É verdade que algumas mentes lúcidas ficaram horrorizadas com estas perversões. “Escutai-me, juízes famintos de dinheiro e fiscais sedentos de sangue: as aparições do diabo são mentira”, escreveu, no século XVII, o teólogo luterano Johann Meyfarth. Tinha presenciado centenas de processos por bruxaria e vira o modo como os verdugos se deleitavam com o suplício das vítimas. Meyfarth foi buscar as suas ideias a um compatriota, o jesuíta alemão Friedrich Spee von Langenfeld, que publicara, em 1631, de forma anónima, Cautio criminalis, onde confessava o seguinte: “Se não somos todos bruxos, é porque ainda não fomos sujeitos aos tormentos; o próprio Papa, submetido à tortura, confessaria que também ele era bruxo.”
Procura-se hereges frescos Durante a Idade Média, a feitiçaria era considerada a arte dos malefícios e encantamentos, sendo apenas punida com a morte se produzia efeitos nefastos, mas, depois, começou a ser entendida como uma traição a Deus. “Quem inventou e propagou a bruxaria foi a Inquisição”, afirma o historiador Rossell Hope Robbins; o Santo Ofício, na sua opinião, necessitava de uma nova heresia, depois de eliminados os albigenses e outros dissidentes do Sul de França. “A bruxaria foi criada para preencher esse vazio”, acrescenta. Serviu também para aumentar o número de hereges e as receitas. Todavia, a Inquisição em breve perdeu o controlo processual sobre a bruxaria herética, excepto em Espanha e em Itália, onde constituía uma poderosa organização centralizada que, surpreendentemente, agiu mais em defesa das bruxas do que como parte da acusação. O instrumento que legitimou o início da caça às bruxas foi a bula Summis desiderantes affectibus (1484), de Inocêncio VIII. Esse papa, que passou os últimos meses da sua vida a ser amamentado com o leite de uma mulher e que os médicos tentavam rejuvenescer com transfusões de sangue que levaram três jovens para o túmulo, foi responsável por abolir o Canon episcopi, de 906. O documento exprimia a posição oficial da Igreja, segundo a qual a bruxaria era uma superstição; era heresia acreditar nela. Graças a Inocêncio VIII, passou a ser herege quem não acreditasse nessas coisas. A bula reforçou os poderes de dois inquisidores alemães, os dominicanos Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, que estavam dispostos a acabar com a seita dos valdenses no vale do Reno. Tinham finalmente ensejo de punir severamente esse movimento herético, que acusaram de feitiçaria; em 1486, publicaram a obra que seria uma referência obrigatória durante 200 anos: o Malleus Maleficarum (“martelo das bruxas”, no feminino, pois era considerada um assunto de mulheres). “O antifeminismo medieval tem as raízes assentes numa antiga tradição cristã”, afirma Joseph Pérez. Na obra Formicarius (1475), o teólogo alemão Johannes Nider insistia no papel preponderante da mulher na bruxaria. A ideia de que as mulheres eram seres expostos às tentações e, por conseguinte, perigosas já tinha sido manifestada por Santo Agostinho e subsistia no século XVIII, como demonstra, por exemplo, o Diccionario de Autoridades (o primeiro publicado pela Real Academia de Espanha), que descreve deste modo os praticantes de bruxaria: “São mais vulgares as mulheres, pela sua superficialidade e fragilidade, pela luxúria e pelo espírito vingativo que nelas costuma reinar.” A morte da razão provocada pelos julgamentos sumários por bruxaria encontra a sua vertente mais dolorosa nesta confissão de um torturado à mulher que denunciou: “Nunca te vi num conciliábulo de bruxos, mas tinha de acusar alguém para acabar com os tormentos. Lembrei-me do teu nome porque, quando me levavam para a prisão, encontrámo-nos e disseste que nunca terias acreditado numa coisa assim contra mim. Peço-te perdão, mas, se voltassem a torturar-me, voltaria a acusar-te.” Talvez se pudesse pensar que a barbárie foi apenas produto da ignorância que reinava naqueles tempos obscuros, mas não é assim. Efectivamente, a caça às bruxas permaneceu activa, sob outras formas, até tempos recentes. O ser humano nunca esteve a salvo, em nenhum momento da história, de voltar as costas à razão. Se não permanecermos alerta, qualquer um de nós poderá, em qualquer altura, acabar por acreditar na maior loucura. Nunca é demais recordar as sábias palavras de um arcebispo do século IX: “Este miserável mundo jaz, hoje, sob a tirania da estupidez. Os cristãos acreditam em coisas tão absurdas que seria impossível fazê-las crer aos infiéis.” Caça fina Apesar da fama da Inquisição espanhola, a verdade é que a caça às bruxas foi relativamente benigna. Segundo Joseph Pérez, o país teve menos processos por bruxaria do que na Europa, e a maioria das sentenças foram leves: desterro, açoites, prisão, quase nunca execuções. O auto de fé mais famoso foi o de Logroño, em 1610, contra as bruxas de Zugarramurdi, no qual foram processadas 40 habitantes daquela aldeia navarra; 12 foram condenadas à morte na fogueira. Os testemunhos basearam-se em superstições e invejas e os inquisidores deixaram-se levar pela histeria social e pelo caso da vizinha comarca francesa de Labourd, onde o jurista Pierre de Lancre tinha condenado 80 pessoas. Em geral, segundo Pérez, “a Inquisição espanhola tentou encontrar explicações racionais para o comportamento das bruxas, enquanto no resto da Europa a credulidade dos juízes enviou milhares de mulheres para a morte”. Para aquele hispanista, esse comportamento diferente deveu-se ao facto de Espanha ter escapado às guerras religiosas que assolaram o continente. Por outro lado, a Inquisição estava demasiado ocupada a perseguir os mouriscos, os marranos e os luteranos, pelo que foi mais branda com a bruxaria, que não era considerada uma heresia em sentido estrito. Os processos de Salem Em 1692, o diabo fez escala numa povoação do Massachusetts chamada Salem. Tratava-se de uma comunidade puritana que se regia por uma rígida e fanática religiosidade, com cada habitante a vigiar o comportamento alheio. Era nesse contexto que um grupo de raparigas se reunia para escutar as histórias fantásticas narradas por Tituba, uma escrava do reverendo Samuel Parris. As mais novas do grupo, Elizabeth, de nove anos e filha do clérigo, e Abigail Williams, de onze, começaram a sofrer convulsões e a desafiar e desobedecer a pais e familiares. Os seus ataques histéricos inspiraram as outras jovens. Estavam a ser, supostamente, perseguidas por espectros, e transformaram em bodes expiatórios as pessoas que mais antipatia despertavam na comunidade. Depois, estenderam as acusações aos restantes cidadãos: ninguém estava a salvo. Os juízes do processo acreditavam que tudo se devia à acção do demónio e usaram as jovens como autênticos “detectores de bruxaria”: qualquer pessoa que indicassem era acusada, mesmo na ausência de quaisquer provas. Foram detidos 31 indivíduos (dos quais 25 eram mulheres), condenados à morte para evitar “a ira de Deus”. A escrava Tituba foi encarcerada por tempo indeterminado, sem julgamento. Catorze anos depois, uma das jovens, Ann Putnam, confessou que tudo não passara de uma farsa, orquestrada, como não podia deixar de ser, pelo demónio. SUPER 154 - Fevereiro 2011
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