quinta-feira, 14 de abril de 2011

A Páscoa e a tradição do folar


Estamos a menos de um dia do início da XIII Feira do Folar de Valpaços, mais uma realização deste evento festivo da época pascal e na expectativa de mais uma imensa e agradada afluência do público, como se tem verificado. Em homenagem à popularidade que estes três dias de festa têm merecido, o que é uma prova incontestável do respeito e do apreço pela tradição e pelo património popular da região valpacense, não nos pareceu despropositado deixar aqui algumas palavras ao significado tradicional do folar e da sua relação com a Páscoa. Afortunadamente achámos uma mensagem muito curiosa a esse respeito publicada a 20 de Abril de 2009 por um transmontano que viveu essa mesma tradição do folar e se exprime a respeito dela de uma forma clara e inteligível para todos os leitores. Trata-se de Virgílio Nogueiro Gomes, e essa mensagem foi publicada no seu blogue com o mesmo nome, um blogue dedicado, a propósito, à gastronomia.      

FOLARES e a Páscoa
20 Abril 2009

Os nossos apetites deveriam estar em sintonia com os períodos cíclicos da Natureza, que indubitavelmente marcaram outras tradições, ligados a festejos religiosos. Mesmo não aderentes a qualquer tipo de fé, ou doutrinas religiosas, vemo-nos entusiasmados com as festas. E que vivam as festas à mesa.

Quem não resiste a um folar?

Segundo os mais velhos, antigamente, apenas se comia folar na Páscoa. Na Páscoa também temos a presença dos ovos, as amêndoas e o cordeiro. Mais recentemente aparece a figura do coelho associada aos ovos de Páscoa. A Páscoa coincidia ou era próxima da chegada da Primavera pelo que foi fácil manter ou prolongar as festas que lhe estavam associadas. O ovo significa o início de vida, o renascer ou a ressurreição. Referido desde a antiguidade. Grandes referências ao ovo vamos encontrar já nos egípcios, gregos e romanos. O ovo, receptáculo de vida, significava também o início da refeição, e encontramos ilustrações nos túmulos dos etruscos figuras com um ovo na não significando o início da viagem para o outro mundo. A expressão “de ovo usque ad mala” (do ovo à maçã) quer dizer que se começa a refeição com ovo e se termina com fruta. Apesar de os ovos serem de origem animal, muitas religiões os aceitam como elemento válido durante os períodos de jejum. Assim os ovos nos aparecem hoje omnipresentes nas confecções culinárias pascais, ou como elemento figurativo sobre os folares e depois a versão mais recente de “Ovinhos de Páscoa” com diferentes recheios e produtos de confeitaria.

Antigamente já tínhamos as amêndoas nas diferentes variações regionais, e a expressão “amêndoas” significava também os presentes que se trocavam nessa época.

Durante os dias finais da Semana Santa a azáfama enchia todos os fornos padeiros para, à vez, cozer os folares de cada casa, ou da família. Hoje em dia tornou-se mais prático adquirir os folares na pastelaria mais próxima, ou na pastelaria que faz o folar mais ao nosso gosto.

Segundo Maria de Lourdes Modesto e Afonso Praça o “folar seria uma espécie de contraponto do pão ázimo que tem o peso teologal do sacrifício e da penitência”.

Em Lisboa temos a sorte de poder adquirir bom folar, durante todo o ano, em casas da especialidade, e algumas delas propriedades de ilustres transmontanos. Eu confirmo a qualidade sendo um consumidor discreto e fazendo sucesso presenteando outras casas, de outras tradições, mas onde folar sabe bem a todos, até pela surpresa.

Mas como nos chega esta tradição do folar?
Para muitos,  folar,  era o presente que os padrinhos e madrinhas davam aos seus afilhados na Páscoa. Para quebrar o período de grande jejum. Era também folar a recolha que os Párocos faziam nas casas dos seus paroquianos durante a visita pascal que acontecia Domingo de Páscoa e se prolongava por Segunda-feira.

Mas em termos culinários, nestas coisas de comer em Trás-os-Montes, o folar, é genericamente uma massa de trigo sempre levedada com fermento padeiro, com mais ou menos ovos e com recheio de carnes. Não confundir com bolas de carne que se fazem durante todo o ano, e sobre as quais escreverei mais adiante.

Noutras regiões do País encontramos ainda folares doces, em particular no Algarve e Alentejo, e muitas vezes com ovos inteiros, na cobertura, que cozem em simultâneo. Se registarmos as localidades onde se mantém a tradição do folar temos que assumir que a maioria associa o folar a um pão doce com ovos.
Mas voltemos aos nossos folares, quer dizer aos meus, pela tradição que vivi, por ser transmontano.
Muito embora reconheçamos que a sua tradição está ajustada à época pascal, temos antecedentes, dos folares, na tradição transmontana e beirã, de bolas recheadas quer com carnes, quer com sardinhas. Estas eram dos poucos peixes de mar que chegavam àquelas terras de Trás-os-Montes e Beiras Interiores. Ora, essas bolas eram confeccionadas por razões de conservação dos alimentos. Carne ou peixe confeccionado e embrulhado numa massa com gorduras, e cozida, conservavam-se por vários dias. Não esqueçamos que a conservação por frio, frigoríficos ou congeladores, é uma técnica recente. Na zona de Penafiel ainda hoje se fazem bolas, ou pães, recheadas de peixe ou carne. E estas bolas têm apenas massa de pão mas sem ovos. Destas tradições, a mais viva e permanente, ainda são os pãezinhos com chouriço.

Pelas terras nordestinas e beirãs, encontramos referência a bola de bacalhau e sardinhas. Temos ainda o pão de azeitonas e o pão de chicha gorda que ainda hoje me faz lamber os beiços.
Não podemos esquecer as bolas de azeite ou bolas sovadas.

Depois temos as bolas de carne (várias qualidades), bola de presunto gordo de Lamego, bola de frango, coelho e vitela de Favaios, bola de anho, linguiça, chouriço e presunto de Sabrosa, bola de vitela Barrosã, presunto, chouriço e salpicão do Barroso, … e tantas outras sendo que em cada terra terá a sua particularidade.

Nos folares se em Mirandela é recheado com frango, salpicão e presunto, em Valpaços ainda se acrescenta chouriço, … e mais ainda pois “cada terra com seu uso”.

Não podemos esquecer a dedicação das mulheres, Mães, Tias e Avós, que dedicavam uma atenção especial à criançada com a execução dos folaricos. Estes eram pequenos folares apenas recheados com chouriço ou presunto, que alegremente comíamos no fim da fornada. A confecção dos folares pascais era uma actividade essencialmente feminina. Como foram todos os doces até finais do século XIX.

Aceitemos então que o folar de carnes, refeição completa, está presente em toda a região de Trás-os-Montes e Beiras Interiores. São então os nossos folares, uns pães ricos recheados com carnes, que celebram um longo período de jejum. Eram então o elogio da fartura. Sem esquecer que são um pão, o elemento básico, e estruturante, da nossa alimentação. Talvez por isso, em nenhum forno era esquecida a bênção directa:

“S. Vicente te acrescente
S. Mamede te levede
S. João te faça Pão”

Ainda me lembro que dia de Páscoa o nosso almoço era Caldo Verde e depois um grande Folar recheado de todas as carnes. Adultos bebiam vinho, mulheres e criançada, chá ou sumos. Depois uma grande fartura de doces, sendo o Pão-de-ló obrigatório, ao lado de doces mais populares coma as Súplicas e Económicos.

Quanto ao resto do País temos uma grande variedade de folares doces, cuja massa tem sempre ovo mas cuja apresentação varia de região para região. Até pelas formas como são apresentados: animais como borregos, lagartos ou pombos em Elvas, duplo coração em Castelo de Vide, em forma de galinha em Oliveira de Azeméis, …
A tradição de doces nesta época não é exclusiva de Portugal. Um pouco por toda a Europa se celebra a Páscoa com festins alimentares. Por exemplo na Alemanha fazem um bolo em forma de cordeiro, e uma “coroa” de Páscoa feita de uma massa de bolo com amêndoas e chocolate e depois enfeitada com ovos coloridos. Na Espanha as famosas Tortas de Páscoa e na Itália os Aros de Páscoa.

Enfim para cada paladar sua sugestão. Mas aprendamos a manter as nossas tradições e fazer delas uma das nossas preocupações. Não temos ainda necessidade das soluções “interrogantes ou questionantes”. Comam os nossos folares doces ou salgados. Ou vão experimentando à mesa a rota dos nossos folares, fazendo “turismo cá dentro”.

BOM APETITE

© Virgílio Nogueiro Gomes
 In http://www.virgiliogomes.com/cronicas/157-folares-e-a-pascoa

2 comentários:

  1. Nascida em Valpaços mas criada em Lisboa, recebi hoje da minha mãe a tradição de família de amassar e cozer o folar. Ao todo foram 7 que, como manda a tradição transmontana da partilha, já estão quase todos distribuídos.

    Gostei muito do vosso blog e continuarei a acompanhar a história e notícias da minha terra com a vossa ajuda.
    Muito obrigado e uma Santa Páscoa.

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  2. Ficamos felizes sempre que descobrimos que a tradição se mantém entre as famílias com raízes transmontanas sobretudo famílias valpacenses que se encontram espalhadas por este país e pelo mundo fora, como é o seu caso Miss Sparkly. Bem-haja por nos acompanhar neste blogue que é de todos os transmontanos e valpacenses e dedicado especialmente a si e a todas as pessoas que, como a sua mãe, não deixam morrer a tradição
    Uma Santa Páscoa para si e para a sua família.

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