sexta-feira, 27 de maio de 2011

Génios loucos

Criativos, sensíveis, estranhos

A história está cheia de mentes geniais capazes de criar obras sublimes e, ao mesmo tempo, cair na loucura e nas piores perversões, no roubo ou mesmo no homicídio.
A galeria Tate Britain de Londres expõe, entre outras jóias artísticas, um pequeno quadro intitulado O Golpe de Mestre do Lenhador-Duende. O autor, o pintor Richard Dadd, fez uma viagem ao Egipto, em 1842, durante a qual sofreu uma trágica mudança de personalidade, provavelmente causada pelo consumo de ópio e de outras drogas. No regresso, já não voltaria a ser ele próprio: o seu carácter tornara-se azedo e mostrava-se paranóico e agressivo.
De volta a Inglaterra, Dadd assegurava que o deus egípcio Osíris o incumbira de uma dolorosa missão, cujos detalhes não revelava. A conselho de um médico, o pintor resolveu passar um período a descansar na casa de campo da família, no Kent. Uma tarde, enquanto passeava por um bosque nas redondezas, Dadd desferiu uma machadada no pai e, depois, desmembrou o corpo. O parricida foi detido passados alguns dias, em França, quando se preparava para degolar um homem. Entre os seus pertences, a Polícia encontrou um caderno onde escrevera uma longa lista de nomes de pessoas, entre as quais se contava o papa, que devia assassinar por ordem de Osíris.
Aos 27 anos, Dadd foi encerrado num hospício, onde dedicou quase uma década à referida tela, que mostra um grupo de fadas, elfos e duendes a observar um lenhador que se prepara para dar uma machadada. A seus pés, não há lenha, apenas terra. Dadd morreu no hospital psiquiátrico de Broadmoor, em 1886.

Quebrar o gelo

No começo do século XX, numa das suas inúmeras bebedeiras, Maurice Utrillo pegou fogo ao hotel de Montmartre onde se alojava. Na rua, no meio dos bombeiros e polícias, a multidão apontava para o telhado do hotel, onde se perfilava a figura do pintor francês. Os habitantes do bairro tinham-no reconhecido e gritavam “É o louco!”, “Detenham o louco!”.
Em 1905, o dramaturgo Alfred Jarry, autor de Rei Ubu e criador da escola patafísica, sentou-se num café parisiense ao lado de uma senhora e, por alguma razão, resolveu embirrar com um cliente que se encontrava junto desta. Ergueu-se, tirou uma pistola do coldre e disparou contra um espelho, provocando pânico no café e a fuga precipitado do fulano que o punha nervoso. Já calmo, voltou-se para a aterrorizada dama e disse-lhe: “Agora que quebrámos o gelo, conversemos.” O seu gosto por puxar o gatilho causou-lhe vários problemas, mas nunca feriu ninguém.

Extravagantes e criminosos

Muitos artistas foram extravagantes, associais ou neuróticos, assim como obcecados sexuais (Giacomo Puccini), com tendência para a pedofilia (o pintor Balthus), escatológicos ou infantis e malcriados (Amadeus Mozart). Outros tinham graves perturbações mentais, como o poeta surrealista Antonin Artaud, natural de Marselha, que sofria de doença bipolar. Por sua vez, o pintor surrealista Salvador Dalí, criador do “método paranóico-crítico”, foi considerado como um génio ególatra e enlouquecido.
Michael Fitzgerald, psiquiatra irlandês do Trinity College Dublin, assegura que muitos génios foram vítimas de alguma forma de autismo. Será que isso significa que o talento criativo está relacionado com a loucura? A maioria dos psiquiatras rejeita semelhante associação. Os grandes artistas podem ser tão normais ou tão perversos como qualquer outra pessoa.
Músicos, pintores ou escritores são criativos e hiper-sensíveis, mas podem também ser assassinos, ladrões ou seres pervertidos. Tal como os restantes mortais, exibem as diversas variantes da condição humana, como poderá apreciar nas páginas que se seguem.

Sid Vicious: décibeis de sangue

John Simon Ritchie nasceu em Londres, em 1957, e foi criado pela mãe, toxicodependente, depois de o pai os ter abandonado. Na adolescência, fez parte de bandas de rua e andou a vender droga. Uma vez, quando assistia a um concerto, feriu uma espectadora e esteve preso uma semana. Depois, juntou-se ao movimento punk e conheceu o vocalista dos Sex Pistols, Johnny Rotten, que lhe deu o nome de Sid Vicious. Foi com esse pseudónimo que se juntou ao grupo como baixista, em 1977.
Viciado em heroína, Sid deixou a banda em 1978 e instalou-se no Hotel Chelsea de Nova Iorque com a namorada, a groupie Nancy Spungen. No dia 12 de Outubro, ela foi encontrada morta no quarto que partilhavam, apunhalada e banhada em sangue. No chão, havia seringas e uma faca. Sid, aturdido com a droga, foi acusado de assassínio e libertado sob fiança. Enquanto aguardava o julgamento, morreu de overdose aos 21 anos.

Cervantes: brigas e prisão

O pai de Cervantes era um médico que passou por grandes dificuldades para conseguir sustentar a numerosa prole. Na juventude, Cervantes foi para Madrid, onde decidiu dedicar-se às letras, mas meteu-se numa briga e feriu um tal Antonio de Sigura, segundo filho de um membro da alta nobreza espanhola. Foi condenado à mutilação da mão direita e a dez anos de desterro, mas fugiu para Itália e refugiou-se na milícia. O jovem escritor combateu em Lepanto, onde perdeu a mobilidade da mão esquerda, e esteve cinco anos preso em Argel. De regresso a Espanha, foi parar à cadeia, acusado de vender parte do trigo destinado à Armada. Diz-se, também, que foi proxeneta das irmãs.

Caravaggio: um pintor em fuga

A vida de Michelangelo Merisi da Caravaggio foi recheada de tumultos, sexo, violência e fugas precipitadas. Nasceu em 1571, no seio de uma modesta família milanesa, e chegou a Roma aos 21 anos na mais absoluta miséria. Ali, trabalhou como retratista para subsistir, antes de entrar ao serviço do cardeal Del Monte, próximo dos Médicis. Na cidade, aperfeiçoou a técnica do claro-escuro... e a dos escândalos.
Dizia-se que roubara o cadáver de uma mulher para servir de modelo da Virgem. Era alcoólico, frequentava os bas-fonds e passou várias vezes pela prisão. O jogo, a noite e a prostituição feminina e masculina fascinavam-no. Em 1606, aos 35 anos, matou um tal Tomassoni num duelo por causa de uma dívida de jogo. Foi condenado à morte, mas conseguiu fugir para Malta. Ali, foi acolhido pelos cavaleiros da Ordem de Malta graças ao seu talento artístico. Passados dois anos, fugiu novamente, após seduzir a filha de um dignatário, e foi expulso da Ordem por ser “putrefacto e fétido”. Esteve na Sicília e em Nápoles, seguindo depois para Roma a fim de obter o perdão do papa, mas morreu em circunstâncias estranhas e o seu corpo nunca foi encontrado. Corria o ano de 1610.

Jean Genet: a vida nas margens

Nascido em Paris, em 1910, de uma mãe prostituta e pai desconhecido, Jean Genet foi entregue à assistência pública, que lhe deu um uniforme, um par de tamancos de madeira e um número de registo. Deixou o orfanato para ser acolhido por um casal que cobrava 21 francos por mês para mantê-lo, e cometeu o primeiro roubo aos dez anos. Aos 15, foi enviado para um centro de menores perto de Tours, onde permaneceu três anos. Foi ali que descobriu a sua homossexualidade.
Aos 18 anos, alistou-se na Legião Estrangeira e foi enviado para o Norte de África. Depois, deixou a milícia e prostituiu-se até conseguir voltar a Paris. Preso por roubar e falsificar documentos, foi na cela que escreveu Diário de um Ladrão. Jean Cocteau reparou no seu talento e arranjou-lhe editor, mas Genet continuou a roubar livros nas bibliotecas para vender na rua. Detiveram-no novamente e esteve à beira de ser condenado à prisão perpétua, mas Cocteau intercedeu e a pena foi reduzida a alguns meses. Depois, conheceu o êxito literário, participou nos movimentos de Maio de 1968, apoiou diversas causas revolucionárias e instalou-se em Larache (Marrocos).

Chatterton: mentir para triunfar

Nos seus escassos 18 anos de vida, Thomas Chatterton (1752–1770) conseguiu transformar-se num ícone da poesia pré-romântica e... num grande impostor. Natural de Bristol e órfão de pai, foi internado num colégio aos seis anos. Lia febrilmente e, aos onze, compôs os seus primeiros poemas. Inspirando-se em antigos pergaminhos, escreveu a écloga Eleonore e Juga, na qual imitava uma linguagem medieval que fez passar como sendo do monge Thomas Rowley. Ao ver que a coisa pegava, continuou a criar falsificações e a vendê-las por alguns xelins. Inventou autores e escreveu obras que provinham, supostamente, de um cofre encontrado numa igreja. Quando se descobriu a fraude, fugiu para Londres e começou a assinar com o seu nome. Chegou a publicar mas, depois, suicidou-se com arsénico.

William Burroughs: rápido no gatilho

Além de ser um dos escritores mais influentes da geração beat, William Burroughs (1914–1997) foi um grande adepto das armas e um tenaz dependente de heroína. Em 1951, perseguido pela polícia norte-americana, emigrou com a família para o México. Numa noite de embriaguez, colocou uma maçã na cabeça da mulher, Joan Vollmer, e disparou o seu Colt 45. Embora se orgulhasse da pontaria, falhou e matou-a. Acusado de homicídio voluntário, passou alguns dias na cadeia, mas conseguiu sair com o auxílio da sua família abastada, proprietária da companhia de calculadoras Burroughs Adding Machines. Refugiado em Tânger, bissexual e consumidor de drogas compulsivo, escreveu livros fascinantes como Junkie ou Naked Lunch (Festim Nu), baseados na sua experiência.

Arthur Rimbaud: mudado a tiro

Em 1880, Arthur Rimbaud tinha 26 anos e vivia na Etiópia, onde se dedicava ao tráfico de seda, ouro, plumas e armas. “Importamos espingardas”, escreveu à família. Uma existência oposta à vida com que sonhara quando trocou a sua Charleville natal por Paris, aos 17 anos, para se transformar num poeta boémio. Em 1871, o belo adolescente deslumbrou com os seus versos Paul Verlaine, o qual abandonou a mulher e o filho por ele. Os dois poetas amaram-se e embriagaram-se de absinto e haxixe. Durante uma cena de ciúmes, Verlaine deu um tiro no efebo e foi condenado a dois anos de prisão. Depois de criar, em três anos, uma das obras ímpares da literatura, Rimbaud fugiu e trocou a boémia pelos negócios, mas não encontrou paz em África. Sozinho e doente com cancro, regressou a Marselha para morrer.

Marquês de Sade: castigado pela sua libertinagem

Donatien Alphonse François, marquês de Sade, nasceu em Paris no seio de uma família da aristocracia provençal, em 1740. Na sua vida acidentada, foi preso por ordem da Monarquia, da República e do Império, e passou 27 anos encerrado em diversas cadeias e manicómios. Quais foram os seus crimes? Um comportamento com tendência para os excessos, caracterizado por uma sexualidade agressiva, além dos textos que escreveu, considerados demasiado violentos e eróticos. O pai, numa tentativa para o endireitar, casou-o aos 23 anos com a herdeira de uma família nobre e abastada. A mulher sustentou-o economicamente, apesar dos escândalos que ele protagonizou. Acusado de rapto, violência sexual e actos de barbárie contra três jovens que o denunciaram, Sade passou a juventude em fuga.
Aos 37 anos, foi enviado para a cadeia. Durante os treze que passou por detrás das grades nas prisões de Vincennes e da Bastilha, escreveu Os 120 Dias de Sodoma. Libertado em 1790, o “Divino Marquês” sobreviveu à custa da publicação de obras clandestinas escandalosas, como Justine. Durante a Revolução francesa, tomou posição contra a pena capital e a guilhotina. Em 1800, publicou Zoloé e as Suas Duas Amantes, obra que exaltou os ânimos e lhe valeu a condenação dos revolucionários. Sade foi encarcerado no hospício de Charenton, onde morreu em 1814, aos 74 anos.
Muitas histórias foram inventadas, e outras exageradas, sobre o nobre cujo apelido deu origem à palavra “sádico”. A verdade é que falou de sexo sem pudor, um pecado grave no século XVIII, e parte dos seus manuscritos foi destruída pela própria família.

SUPER 156 - Abril 2011

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