quinta-feira, 8 de abril de 2010

Cristóvão de Moura, uma figura controversa

O desfecho da crise dinástica despoletada pela morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir no ano de 1578 ficou a dever-se à argúcia de um jovem diplomata português que desde tenra idade frequentou a Corte espanhola, regressando a Portugal integrando o séquito da princesa D. Joana que veio a casar-se com D. João III e retornando com ela à Espanha assim que enviuvou. Trata-se de Cristóvão de Moura e Távora, filho de Luís de Moura, alcaide mor de Castelo Rodrigo e de D. Beatriz de Távora. Tendo caído nas boas graças de Filipe II que nele reconheceu excelentes dotes para a diplomacia, fê-lo embaixador de Lisboa, para onde se deslocou Cristóvão de Moura, chegando aí a 25 de Agosto de 1578. Foi ele quem fez valer os direitos à pretensão do rei espanhol ao trono de Portugal, obtendo junto dos principais jurisconsultos parecer favorável a tal pretensão e cativando através de certos favores a simpatia de uma  franja da fidalguia e da grande maioria da burguesia portuguesa. Reunidas as cortes em Tomar, no ano de 1581, logo aí Filipe II foi aclamado rei de Portugal, com o nome de Filipe I, consumando-se a união dos dois reinos sob a mesma coroa. O papel assumido por Cristóvão de Moura nesta delicada conjuntura da História de Portugal e a acumulação dos mais altos cargos, títulos e doações que desse papel lhe advieram haveriam de fazer recair sobre ele os mais acirrados ódios, enraizando-se no imaginário colectivo da população portuguesa em relação à sua pessoa a imagem de um infame traidor, imagem essa que hoje perdura amiúde na região de Figueira de Castelo Rodrigo, de cujo concelho, à época com sede em Castelo Rodrigo, foi ele feito senhor no ano de 1594 e em cuja aldeia histórica ainda se podem admirar as ruínas do seu palácio quinhentista.

O professor José Hermano Saraiva publicou no jornal regional de Figueira de Castelo Rodrigo, Ecos da Marofa, um interessante artigo em relação a esta figura controversa da História de Portugal, que passamos a trancrever:

CRISTÓVÃO DE MOURA, HERÓI OU TRAIDOR – MANEIRAS DE VER

Cristóvão de Moura era filho de Luís de Moura, alcaide-mor de Castelo Rodrigo, e de Beatriz de Távora. Tanto o pai como a mãe eram fidalgos mas o que colocava Cristóvão em alto plano eram os Távoras. Seu tio materno, Lourenço Pires de Távora foi uma das principais figuras da nobreza portuguesa do seu tempo e exerceu, com brilho, as funções de embaixador de Portugal na corte espanhola. Foi esse tio que o levou para a corte espanhola aos catorze anos. Aí foi pajem da Infanta D.Joana, que veio a casar com o Príncipe D. João e dele enviuvou poucos meses depois. O pajem Cristóvão regressou assim a Madrid, onde passou ao serviço de Filipe II, que o estimava como a um filho. Toda a sua vida correu em Espanha e as várias vezes que visitou Portugal, fê-lo como diplomata ao serviço de Castela. Após a morte de D. Sebastião, na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, sucedeu ao trono o já idoso Cardeal D. Henrique, e, por morte deste, em 1580, levantou-se o problema da sucessão na coroa portuguesa. Os vários pretendentes eram todos netos do Rei D. Manuel I: Tratava-se de escolher entre eles quem tinha mais direito. A quase totalidade da nobreza e os grandes mercadores inclinavam-se para Filipe II de Espanha, por este ser filho de D. Isabel, filha de D. Manuel. Uma outra facção, muito menos numerosa, entendia que o direito pertencia a D. Catarina, que era filha do Infante D. Duarte, também ele filho de D. Manuel. As classes populares entendiam que o direito pertencia a D. António, filho do Infante D. Luís, também filho de D. Manuel. MAS este Infante não casara e por isso D. António era filho natural, o que, segundo as leis do tempo, prejudicava o seu direito sucessório. Havia ainda outros netos mas sem relevância política. Filipe II enviou então a Portugal o seu íntimo colaborador Cristóvão de Moura com a incumbência de fazer a propaganda da sua candidatura e de atrair as adesões de alguns membros da nobreza que pareciam hesitar entre Filipe, D. Catarina e D. António. A escolha não era fácil. A Lei Sálica, que estava em vigor, preferia sempre a linha masculina à feminina. Ora Filipe era varão mas o seu direito à coroa de Portugal vinha por linha feminina. Catarina herdara esse direito por via masculina mas era mulher. Como escolher entre os dois? As opiniões dos juristas dividiam-se. Mas, mais poderosa que a subtileza da lei era a força dos factos: Filipe II era o único dos pretendentes que podia dispor da força das armas, e dispunha de um esmagador peso político e económico. O povo entendia que varão e filho de varão era D. António, e não se preocupava muito pelo facto de ser filho ilegítimo, acrescido da circunstância de a mãe, Violante Gomes, ser cristã-nova. Também D. João I – Mestre de Avis – era filho natural e isso não impediu de ser um grande rei e tronco de uma famosa dinastia. Cristóvão de Moura, embaixador extraordinário de Filipe II, conseguiu convencer muita gente, muitas vezes em troca de promessas, dádivas, favores. A causa de Filipe II triunfou e Cristóvão de Moura foi nomeado vedor da fazenda. Recebeu grandes recompensas, entre elas a doação da Vila de Castelo Rodrigo, com o título de Conde. A confiança de Filipe era tanta que o nomeou seu testamenteiro. Para o povo, o embaixador de Filipe II era um traidor. Para a nobreza, um herói, porque à sua habilidade diplomática se deve que o rei Filipe I de Portugal tenha respeitado a soberania portuguesa em muitos aspectos, nomeadamente mantendo a moeda nacional, a bandeira, a nomeação de portugueses para os cargos superiores de Portugal, etc. Essa preocupação de defender na medida do possível a autonomia de Portugal veio a valer-lhe a perda do validamento político quando a Filipe II sucedeu no trono português Filipe III, que não concordava com essa orientação política, mascarada contudo com a sua elevação ao título de Marquês.
Quem tinha razão?
Cristóvão de Moura foi um bom português ou um perfeito traidor? O instinto popular de independência exigia que o Rei de Portugal fosse um português, e por isso o braço popular apoiou até ao fim a causa do Prior do Crato. Para Cristóvão de Moura, as leis da sucessão dinástica estavam acima de quaisquer sentimentos patrióticos e parecia-lhe evidente que, na trágica situação em que Portugal se encontrava depois da derrota sangrenta de Alcácer Quibir, a solução que melhor defendia os interesses materiais dos portugueses era a sucessão de Filipe II.
Como se sabe, a dinastia Filipina reinou em Portugal apenas sessenta anos, porque em 1640 uma grande parte da nobreza fez causa comum com o sentimento popular que entretanto não se apagara no coração dos portugueses. Foi essa aliança dos quarenta conjurados de Lisboa com o sentimento geral da população que tornou possível a Restauração do 1 de Dezembro de 1640, que colocou no trono o Duque de Bragança, neto daquela Catarina que, em 1580, não conseguira fazer valer os seus direitos.
Com ou sem Cristóvão de Moura, Filipe II teria ocupado o trono português. O astuto e activo embaixador fez o jogo possível na época. Herói ou traidor? São maneiras de ver. E as sentenças do tribunal da História nunca são definitivas.

José Hermano Saraiva, in jornal Ecos da Marofa, edição de 25 de Janeiro de 2007

Imagem ilustrativa in http://artederoubar.blogspot.com/

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