sábado, 3 de abril de 2010

Valpaços: Reminiscências da cultura popular

Em consequência da evolução natural das coisas, dos tempos e das pessoas, muito do nosso património cultural tem vindo a perder-se ao longo dos anos. Trata-se de uma fatalidade, uma tendência praticamente irreversível, que já nos finais do século XIX causava a preocupação de alguns eruditos que se sentiram na necessidade ou na obrigação de a contrariar, empenhando-se num extraordinário esforço para recuperar algumas partes substanciais dessa área do património cultural que compreende regionalismos de linguagem popular, de romances, rimas e canções de embalar e que também faz parte da nossa História, em tudo aquilo cujo legítimo protagonista é o povo simples e humilde porque o foi preservando como pôde na oralidade. Foi o caso de José Leite de Vasconcelos, insigne linguista, filólogo, arqueólogo e etnógrafo português que ao longo da sua vida reuniu em torno de si, através da fundação da Revista Lusitana, em 1887, e da revista O Arqueólogo Português, em 1895, uma multidão de discípulos que também marcaram a sua época pelos trabalhos que realizaram nesta matéria. Um desses discípulos mais destacados foi o valpacense Joaquim de Castro Lopo, a quem devemos, para além de uma série de obras historiográficas e de investigação arqueológica, interessantes pesquisas sobre a Linguagem popular de Valpaços e de curiosos romances populares transmontanos, colhidos da tradição popular na mesma Vila.
Passamos a transcrever (sem actualizar a grafia, à excepção de alguns acentos) alguns excertos do seu legado, que iremos subintitular de Linguagem Popular, Romanceiro Popular e Cancioneiro Popular.


LINGUAGEM POPULAR

(Cartas ao redactor da Revista Lusitana)

I
«Nos Materiaes para o estudo dos dialectos portugueses (Fallar de Rio Frio), publicados na Revista Lusitana, observa o sr. A. R. Gonçalves Vianna (I, 158): “É de notar que tanto em Bragança como em Vila-Real a pronúncia é muito mais semelhante à do centro do reino, desde Coimbra até Lisboa, do que às das suas povoações rurais, ou das cidades das duas Beiras, do Douro e do Minho”. Tem isto outrosim applicação inteira ao fallar da villa de Valpaços.

Valpaços: é hoje a primeira vez que escrevo o nome da minha terra deste modo. Tres razões me levam a isso, das quaes apenas a última entendo ser de bastante valor.

1) No onomasticon é frequente o elemento Paço. Tenho presente o Diccionário da chorographia de Portugal […] onde vejo a seguir: Paço, Paço de Sousa, Paço Vedro de Magalhães, Paços, Paços de Brandão, Paços de Ferreira, Paços de Gaiolo, Paços da Serra, Paços de Vilharigues.

2) Encontrei graphia Valpaços: a) num livro manuscripto de 1694, que contem os estatutos da Confraria do Santíssimo Sacramento; b) em documentos officiaes de 1805, 1813, 1817, 1828, 1835.

Na carta de confirmação de privilégios concedidos aos moradores d’esta villa, dada por D. Maria I, aos 12 de Abril de 1796, acha-se Val Paços.

3) Sempre tenho ouvido pronunciar Valpaços, e nunca Valpassos, em todas as outras terras e aqui, onde, como em grande parte da província trasmontana se póde considerar “característica fonética”, na phrase do sr. Gonçalves Vianna […] “a distinção constante entre os valores de ç e s surdo, de z e s sonoro”. […]

[…]Passo a apresentar-lhe, a título de informação, […] alguns vocábulos populares [comuns ao concelho de Valpaços]:

Açobar, açular
Açude. É feminino
Alferga, medida de semente de sirgo. No vocabulário de Rio Frio e Moimenta (I, 203) lê-se: “alferza, M., medida de semente de trigo; em gallego alferza, ‘didal’.”. Nunca ouvi alferza, mas conheço o termo alferga. É possível que o sr. Gonçalves Vianna tomasse um g mal escripto no apontamento de que serviu por um z, ajudando à confusão o conhecimento do termo gallego mencionado; a ser isto assim, também poderia ter lido trigo por sirgo.
Argana, espinha, parte óssea do peixe.
Arrouçar, arrastar, virar.
Arrouço, arrastamento.
Ataboar, empanturrar, empanzinar.
Ato, auto. – Em Trás-os-Montes os autos fazem as delícias do povo. Em menos de cinco annos, aqui em volta de Valpaços, já assisti à representação de quatro. Em Vassal vi eu o Marquêz de Mantua. Os autos quasi sempre são representados, ao ar livre, sobre tablados preparados para tal fim. Apenas o ramo se apresenta dentro das egrejas. Os autos sacros são escutados com uma attenção e com um respeito que espantam, attendendo ao modo por que se executam. Num a que assisti nos Possaços, sobre a Paixão de Christo, descuberto, como toda a gente, ninguém teve a imprudencia de sorrir-se, apesar de apparecerem a Mater dolorosa e a Madalena com vestidos de enormes tournoures. Concumitantemente viam-se também graves judeus de chapéu alto de seda. O actor que fazia de Christo, se não chegou a ser crucificado, foi realissimamente martyrizado; mas com isto alcançou grandes indulgencias, e o céu não se ganha a mãos lavadas.
Bágoa, lágrima. “As bágoas pela cara a baixo eram a quatro”. Em gallego a mesma significação:

As bagoas que de el caían
Por tod’a mesa corrian.
(Romance de Doña Silvela).

Benção. Diz-se com o accento tónico na última syllaba. […]
Bilhó, castanha assada.
Calheia, quelha.[…] Cp. Canada e canélha (I, 206)
Canameira, terra de semeadura. O mesmo que cortinha (I, 209).
Canga, engaço (parte do cacho de uvas depois de tirados os bagos)
Cangaço, idem.
Casco, livro impresso ou manuscripto contendo um ou mais atos (autos).
Charangoula, prédio rústico ordinário.
Choina, fagulha. O mesmo que mochéna.
Chua! Serve para chamar pelos porcos.
Conservar, ter, possuir. “Conservar um cavallo”. O seguinte exemplo mostra bem a deiferença entre conservar e ter: “- Vossemecê tem um cavallo –Ter, tem-se elle: conservo um”.
Coxo, peçonha.
Curriça, pequena casa de campo destinada a recolher gado. É um derivado de curro com suffixo –iça, que também se encontra em Chammiça, Chouriça, Villariça, etc. No vocabulário de Matella (II, 106) traz[…] “Currica (termo agrícola, cuja significação ignoro)”. Estou persuadido de que por lapso [foi deixado] por cedilhar o ultimo c d’esse termo […].
Desgueiba, desavença.
Docem, doçura.
Dolmar, dobrar, vergar.
Embeloutar, enlamear.
Endejar, vascolejar.
Esbagoar, chorar, V. bágoa.
Escachouçar, brincar.
1. Espalhadeira. Instrumento agrícola para esparger estrume. Cp. Spalhadeira (II, 107).
2. Espalhadeira. Peça de tear.
Fallar, ter relações amorosas. Cp conhecer nas Respigas do vocabulário açoreano pelo sr. H. R. Lang (Revista Lusitana, II, 53), e:

Bem puderas tu, Sylvana,
Commigo fallar um dia.
(Garret, Rom. II, 107).

Falmega, fagulha. Cp. Fulmega (I, 211).
Febre. É substantivo masculino.
Fim. É algumas vezes feminino.
Frade, espécie de cogumelo.
Furco, medida egual à máxima distancia que se obtem desde a extremidade do dedo pollegar à do dedo indicador.
Immorear, pôr em morêa ou moreia.
Lapuço, láparo.
Leguória. No vocabulário de Parada de Infanções [traz] “Leguória (?)”. As léguas em Trás-os-Montes são de 5 até 12 Kilometros. Leguoria é um diminutivo de legua; será, pois, uma legua de 5 a 7 Kilometros. Analogamente se diz casoria, etc.
Malato, malata, cordeiro, cordeira.
Manda, pedido de dinheiro para festas religiosas: “Fazer a manda para as endoenças”.
Meruge, nome de uma herva de que se faz salada.
Morêa ou moreia, acervo, meda.
Niscarro, especie de cogumelo.
Parroquia, parochia [actualm. paróquia].
Perdente, móvito.
Pinheira, especie de cogumelo.
Ramo, auto sacro de Natal.
Rata, toupeira.
Ratinho, lapso de tempo.
Releixa, roldana.
Rijão, rinhão.
Roca, especie de cogumelo.
1. Rogir, fazer ruído. Cp.:

“E nos ouvidos inda o som lhe roge”.
(Antonio Ferreira, História de Santa Comba dos Valles, t. I, pag. 285 dos Poemas Lusitanos, Lisboa, 1829).

2. Rogir, apparecer, estar: “Quando entrei em casa não rogia lá ninguém”. Rogir (1 e 2) apenas se emprega nas formas em que g é seguido de e ou i.
, verme criado na carde de porco.
Sarronca, papão.
Seitoura, foicinha.
Sóa, forma feminina de .
Tempéra, tempera [actualm. têmpera].Diz-se com accento tónico na penúltima syllaba.
Terendeira ou tarandeira, tábua atravessada de guiços ( paus pequenos) sobre os quaes de collocam as broas de pão centeio, e que se suspende de uma trave ou caibro.
Vestigo, cobra.
Xastre, alfaiate. Cp.:

Mandou chamar os dois xastres
Que tinham mais nomeada.
(Garrett, Rom II, 182).

Franquear a polaina, passear.
O da vista baixa, porco. Como não é decente pronunciar o nome d’este animal, os bem fallantes recorrem a circumloquios mais ou menos polidos: o da vista baixa é o mais usado.
Andar de Jou para Jalles, andar à matroca, andar à toa.
Honrado como a porca de Murça, desavergonhado. Dia 23 de Maio de 1890, estando de passagem em Murça, tive a occasião de examinar de perto o seu precioso monumento megalithico. O monumento, porventura representação brutesca de uma porca, estava pintado de vermelho, o que me causou grande estranheza. Indagando do facto, sobre que a porca vira a casaca, isto é, muda de cor como qualquer trocatintas, sempre que há mudança ministerial. Curioso costume é este que não deixa da actualidade de ser vantajoso para interpretar o dictado vulgaríssimo honrado como a porca de Murça, suprimindo-se d’est’arte a explicação pornographica em voga, que d’elle nesta província de dá.

Valpaços, 25 de Março de 1891
Joaquim de Castro Lopo»


II
«[…]Aqui vão mais alguns vocábulos:

Arganel, argola que se colloca no focinho do porco para impedir que elle fosse.
Asseibar, causar damno em propriedade rústica, mettendo-lhe gado.
Borno, morno.
Capar a agua, lançar obliquamente à superfície da agua uma pedra, obrigando-a a saltos successivos (chapeletas).
Capilota ou pilota, sova, tosa.
Trovoar, trovejar.

Valpaços, 26 de Abril de 1891
Joaquim Castro Lopo»

ROMANCEIRO POPULAR

«VALDEVINOS

- Quedos! quedos! cavalleiros!
Que el-rei vos manda contar.
Falta aqui o Valdevinos,
Seu cavallo iremendar.
Não o achastes vós de menos
À Ceia nem ao jantar;
Topae-lo agora de menos,
Em ponto de mau passar

Deitaram as sete sortes
Qual o havia de procurar.
A trás lhes cahiu por sorte,
A quatro por falsidade.
Mas a quem cahiu por sorte?
Ao pobre velho seu pae.

Lá se vae o pobre velho
O seu filho a procurar.
Pelos altos se vai rindo,
Pelos baixos a chorar.
Encontrou três lavadeiras,
Em um regueiro a lavar.

- Deus vos guarde, ó lavadeiras!
Que Deus vos torne a guardar!
Cavalleiro de armas brancas
Viste-lo aqui vós passar?
- Cavalleiro de armas brancas
Morto está no areal.
O corpo tem-o na areia,
E a cabeça no juncal.

Tres chagas tem no seu corpo,
Todas três de homem mortal:
Por uma chaga entra o sol
E por outra entra o luar:
Pela mais pequena d’ellas
Entrava a aguia real
Com suas asas abertas
E sem as ensanguentar».

Colhido da tradição oral em Valpaços, em 1889.
Joaquim de Castro Lopo


«QUEM QUISER VIVER ALEGRE

Quem quiser viver alegre
Não busque campanha minha,
Que me pariu minha mãe,
Em uma escura montina.
Encontrou-me um ermitão,
Levou-me p’ra a sua ermida,
Sete annos me deu leite
De uma leona parida,
Outros sete me deu pão
De que rendia a ermida.
“Sete e sete são quatorze,
Já podeis ganhar a vida”.
Entregou-me armas, cavallo,
Impontou-me serra a cima.
Encontrei-me com os mouros,
Puseram-me guerra viva.
Quatrocentos lhes matei,
Outros tantos lhe ferira.
Prisionaram-me e levaram-me
P’ra a maior prisão que havia.
Sete annos estive eu nella,
Inda hoje lá estaria,
Se não fora a boa gente
Que naquella terra havia.

Colhido da tradição oral em Valpaços, em 1890,
Joaquim de Castro Lopo»

Fonte: Revista Lusitana, vol II, fasc. I e III


CANCIONEIRO POPULAR

Escolha de rimas infatins / canções de embalar recolhidas em Valpaços.

Cala, cala, meu menino,
Quem é que te há-de arrolar?
Tua mãe foi para o moinho
E teu pai caiu ao mar.


Dorme, dorme meu anjinho,
Meu raminho de jasmim;
Eu vou chamar por Jesus,
Que venha p’ra o pé de ti.


Ró-ró, meu menino,
Dorme e descansa:
Tu és o meu alívio
E a minha esperança.


Rola, rola, meu filhinho,
No teu berço de alecrim…
Lençóis de cambraia fina,
Cobertores de cetim.


Por: Leonel salvado

Fonte: Vasconcelos, J. Leite de, Cancioneiro Popular Português, B.G. da Universidade de Coimbra, 1975.
Foto ilustrativa in  http://soprosdelis.blogspot.com

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