A espingarda que derrotou Gungunhana

Ao combaterem a insurreição dos Vátuas, em 1895, as tropas portuguesas mandadas para Moçambique beneficiaram das lições das guerras entre Zulus e Britânicos, duas décadas antes. A formação em quadrado e o uso da espingarda de repetição Kropatcheck foram determinantes.

Em finais de 1894 a cidade de Lourenço Marques, actual Maputo, está ameaçada pela revolta dos Vátuas. Há barricadas e combates nas ruas, sendo a defesa dirigida pelo major Caldas Xavier. O rei D. Carlos nomeia António Enes alto-comissário para Moçambique. Acompanham-no alguns dos melhores oficiais da época, entre os quais Paiva Couceiro, Eduardo Costa, Aires de Ornelas ou Eduardo Galhardo.

O inimigo era um povo aparentado com os Zulus que, em 1878/79, tinham posto em cheque as forças britânicas na África do Sul. Os Vátuas tinham as mesmas tradições guerreiras, a mesma organização militar e haviam sido equipados pelos britânicos com 30 mil espingardas Martini-Henri, então a arma da infantaria de Sua Majestade. Em sinal de amizade, a Rainha Vitória enviara uma taça em prata a Gungunhana, rei dos Vátuas, exemplar que ainda hoje está guardado por um coleccionador particular português.

Que sentido faz os britânicos apoiarem militarmente um povo aparentado com aquele que os tinha combatido poucos anos antes? Esta foi uma das questões abordadas por Manuel Sanches de Baena em mais uma sessão do Curso Livre de História Militar, "Os Rostos da Batalha", a decorrer até princípios de Junho na Faculdade de Letras, por iniciativa do Centro de História da Universidade de Lisboa.

Para perceber porquê é preciso lembrar o ultimato de 1890 que havia posto os dois aliados históricos à beira da guerra, quando o projecto português do Mapa Cor-de-Rosa (ligação de Angola a Moçambique) se tinha confrontado com a ideia britânica do caminho-de-ferro da Cidade do Cabo ao Cairo.

Para combater esta ameaça, mais ou menos discretamente suportada pelos ingleses, as forças portuguesas vão equipar-se noutras paragens. "Quebra-se a tradição, que vinha do séc. XIV, de o armamento português ser semelhante ao britânico", refere o conferencista. E a arma da infantaria vai ser a espingarda de repetição austríaca Kropatcheck. Com oito tiros e o estriado do cano adaptado ao uso no hemisfério sul, era "o topo das armas de guerra de então", possuindo calibre reduzido (9 mm) e um grande poder de impacto.

Eduardo Costa e Aires de Ornelas estudam a guerra anglo-zulu e chegam à conclusão que a sangrenta derrota britânica em Isandhlwana (1879) se deve à falta de poder de fogo (a espingarda britânica era de um só tiro) e à má disposição das tropas no terreno. Concebe-se, então, um modelo de combate baseado no que poderia parecer uma formação anacrónica, o quadrado, destinado a maximizar o poder de fogo e a manter à distância a infantaria vátua muito mais numerosa e difícil de vencer no corpo-a-corpo. Artilharia e metralhadoras pesadas (de canos múltiplos e accionadas por alavancas) intercalavam-se nos cantos e no meio das faces.

A táctica quase redunda em desastre quando no primeiro grande combate, em Marraquene (2 de Fevereiro de 1895), às portas de Lourenço Marques, uma das faces do quadrado é rota por vátuas que se infiltram no dispositivo ao nascer do sol, dizendo ser aliados dos portugueses, vindos para ajudar. "Embora na doutrina militar da época a ruptura do quadrado implicasse a derrota, os oficiais portugueses, nomeadamente Paiva Couceiro, contra-atacam e fecham a face atacada", contou Sanches de Baena. Segue-se um combate contra 6.000 vátuas que acabarão por retirar.

Das lanchas da Marinha, que operavam no vizinha rio Inkomati, ouvia-se "o estrondo do fogo do quadrado, tão assustador como os gritos de guerra dos Vátuas". Esta primeira vitória alivia a pressão sobre a capital e dela são tiradas lições. Adquirem-se na África do Sul lampiões de magnésio para evitar os ataques de surpresa ao alvorecer, bem como chapéus de aba larga para as tropas (que substituem o quépi com cobre-nuca) e cavalos para constituir uma força móvel que possa, também, ter poder de choque.

Chapéus e cavalos

A Kroptacheck revela-se altamente eficaz no tiro. De resto os soldados tinham ordem para não fazer pontaria, limitando-se a disparar paralelo ao chão, à voz de fogo do comandante de secção. Pretendia-se tiro contínuo por salvas e não dirigido a alvos individualizados. Contudo esta espingarda "não era uma arma equilibrada porque o peso das oito balas tendia a puxar o cano para baixo". Como reacção, ao fim de algum tempo, o soldado tendia a levantar o cano e disparar alto de mais. Por isso, "os oficiais usavam a espada para irem corrigindo a altura do tiro".

A estratégia traçada implicava a formação de três colunas que fechassem o cerco a Chaimite, capital de Gungunhana. Por falta de meios apenas serão formadas as de Norte (Eduardo Galhardo) e Sul (Freire de Andrade). Em Setembro de 1895 a coluna sul trava nova batalha em Magulo. O lado do quadrado apenas tem duas fileiras de 17 homens mas a sorte das armas volta a ser favorável aos portugueses e Gungunhana perde um dos seus principais chefes militares.

Em Novembro, um oficial recém-chegado à Coluna Norte, Mouzinho de Albuquerque, distingue-se em Coolela: o cavalo que monta é morto e Eduardo Costa é ferido mas os vátuas, novamente derrotados, abandonam Manjacaze, que é incendiada.

Em Dezembro, Mouzinho, nomeado governador do distrito de Gaza, ignora as ordens superiores e lança um golpe de mão sobre Chaimite onde, jogando com o factor surpresa, aprisiona Gungunhana e manda fuzilar dois dos seus comandantes militares. O próprio Mouzinho reconhecerá em carta posterior, a dignidade com que os dois homens enfrentam a morte.

Como explicou o conferencista, este episódio-chave e a vinda de Gungunhana para Lisboa (morrerá no exílio em Angra do Heroísmo) não põem termo à guerra. Mouzinho, agora comissário régio, lança em 1897/97 a campanha dos Namarrais onde já são empregues forças mais numerosas, incluindo infantaria da Marinha (que formam quadrados com 70 duplas filas de lado) e cavalaria que, em Macontene, fará uma carga decisiva. Ainda assim, Mouzinho será ferido em Mujenga onde, segundo conta posteriormente, lhe atiraram "como a um coelho".

Guerreiros temíveis

Em todo este processo e como destacou Baena, os Vátuas revelam-se combatentes formidáveis, "organizados em companhias, fisicamente muito fortes e com uma enorme coragem". Antes do combate sentavam-se e o seu grito de guerra ao iniciarem a carga, "atroava ao ares", enquanto "o chão tremia com milhares de pés a bater". Tal como os Zulus, procuravam formar uma meia-lua que torneasse o dispositivo contrário pelos flancos. Daí o insucesso das formações britânicas, dispostas em linha nos primeiros combates da guerra anglo-zulu.

O resto da história é sabido. Mouzinho de Albuquerque incompatibiliza-se com o Governo e regressa a Lisboa. "Só se dava bem com os seus camaradas de armas". Nomeado aio do príncipe D. Luís Filipe, desgosta-se com os rumos da política e, após uma eventual desavença com D. Carlos, suicida-se em Janeiro de 1902.

Ironicamente, este sucesso, tanto táctico como tecnológico, das forças portuguesas em Moçambique não lhes conferirá, 15 anos depois, qualquer vantagem, quando começarem os combates com as forças alemãs de Von Letow, operando desde 1914, a partir do Tanganica (actual Tanzânia). Nessa altura - disse Sanches Baena - a guerra tinha voltado a mudar e as tácticas e os armamentos de 1897 estavam totalmente ultrapassados.

Por Rui Cardoso, Quinta-feira, 21 de Maio de 2009

In http://aeiou.expresso.pt/a-espingarda-que-derrotou-gungunhana=f515152