Manuel Buíça e Alfredo Costa foram os dois regicidas, de entre os presumivelmente seis envolvidos, que foram abatidos imediatamente à consumação do assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro D. Luís Filipe, na fatídica tarde do dia 1 de Fevereiro de 1908 no Terreiro do Paço. Interessa-nos falar aqui do primeiro dos mencionados regicidas, pela mera curiosidade que a particularidade de Manuel Buíça ter sido natural de uma aldeia do concelho de Valpaços tem suscitado. Os factos que a seu respeito iremos divulgar, citando o Padre João Vaz de Amorim na Revista Aquae Flaviae, tal como faz Montanha de Andrade, não se destinam a transmitir quaisquer sentimentos de carácter político-ideológico, mas tão só a divulgação imparcial desses factos que consideramos constituirem mais uma curiosidade local ou regional igual a tantas outras que publicámos e publicaremos nesta categoria.
Por detrás da incontestabilidade do acto cometido, esconde-se a questão da sua legitimidade, dos motivos ou das forças que estiveram na sua origem e até hoje muito se tem conjecturado nesse sentido a partir de uma enigmática carta-testamento que se guarda nos arquivos da Fundação Mário Soares e que foi supostamente redigida e assinada por Manuel da Silva Buíça no dia 28 de Janeiro de 1908, portanto quatro dias antes do regicídio, mas cuja assinatura só seria reconhecida por um tabelião lisboeta a 22 de Agosto, documento esse que ficou em posse do então «publicista» Aquilino Ribeiro. É dessa carta-testamento que nasce a controvérsia em torno da figura do regicida transmontano. Vejamos, em primeiro lugar algumas refrências biográficas a respeito da figura em causa, deixando para o final as especulações que o referido documento tem gerado.
O Regicida
No lugar e freguesia de Bouçoais, deste concelho [de Valpaços], nasceu Manuel dos Reis da Silva Buíça, um dos regicidas do Rei D. Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe, que foram assassinados do Terreiro do Paço, em Lisboa, no dia 1 de Fevereiro de 1908. Sua mãe, era Maria Bernarda, também conhecida por Maria Barroso, por seu pai ser oriundo da região barrosã de Cabril, freguesia de concelho de Montalegra, lá bem perto das faldas do majestoso Gerês. Viera ele em companhia de um sacerdote que, durante bastantes anos paroquiou esta freguesia. Aqui casou e constituiu família, chegando esta a ser bastante numerosa. Pobre, e lutando, por isso, com bastantes dificuldades, os pais de Maria Barroso, sendo esta ainda moça, decidiram-se a pô-la a servir, o que realmente fizeram, preferindo a casa de outro abade, Abílio Augusto da Silva Buíça. Este, apesar da sua ilegitimidade, era de estirpe fidalga, de boas tradições e certos meios de fortuna. Acerca dos Buíças e sua ascendência pode consultar-se a obra do Abade de Baçal.
O padre Abílio ordenou-se, talvez, para condescender com a vontade do seu progenitor, não reflectindo bem enquanto ao que é imposto pela Igreja àqueles que têm os dispensadores dos mistérios de Deus. Ascendeu ao sacerdócio levianamente, sem estudar como é de preceito, a sua vocação.
Por isso, não admira que mais tarde na sua negra batina se venham a notar algumas nódoas, embora como homem, sempre se distinga por um porte correcto e por uma linha inquebrantável de honradez. Dos seus amores ilícitos com Maria Barroso Lage houve seis filhos, sendo Manuel dos Reis da Silva Buíça o primogénito, que nasceu, como já dissemos, em Bouçoais, numa casa que fica a poucos metros para poente da actual igreja.
Apenas viu a luz do dia foi levado para o lugar de Cima de Vila das Aguieiras, onde foi amamentado e se demorou por espaço de dois anos.
Dali, voltou novamente a Bouçoais, residindo aqui até aos quatro anos, istó é, até que o abade Buíça consegue permutar a sua paróquia com a de um colega, que a seu tempo pastoreava a Vila de Vinhais. É nesta Vila que Buíça começa a frequentar os estudos primários. Dá boa conta de si na escola, é benquisto dos companheiros e condiscípulos e é obediente e submisso, qualidades essas que aos dezasseis anos o tronam digno de simpatia geral dos seus conterrâneos.
Vem então várias vezes a Bouçoais, onde tem numerosos parentes por parte da mãe (existindo ainda hoje bastantes), percorrendo estes outeiros e montados, mostrando já nesses verdes anos certa perícia como caçador de coelhos e perdizes. Não é somente na caça de monte que ele se revela, entrega-se à caça de rio, cujas águas rumorosas correm lá em baixo, apertadas entre as penedias dos inacessíveis desfiladeiros. Nada bem como um tritão e não tem receio de arrostar com perigos ou de descer às maiores profundidades, sendo sempre o primeiro entre todos os seus companheiros.
Passados esses belos tempos de juventude, assentou praça em Cavalaria, chegando dentro em pouco a Sargento. Deixou por isso a sua família, os seus companheiros de infância, estas terras e outras tantas coisas que ele, de certo mais tarde, ainda viria a recordar com saudade.
Esteve em algumas cidades do Norte, até que por fim, fixou definitivamente a sua residência em Lisboa, onde vem a casar com uma filha do Major João Augusto da Costa. É por ocasião dos preparativos para o seu casamento que Buíça vem, pela última vez, a Bouçoais.
Da sua vida em Lisboa dizem-nos o seguinte: «Café Gelo» ...lugar dos encontros apressados. Na mesa do canto mais escuro ao lado da saída da cozinha, um freguês quase constante, guardava ali a sua roda. Era de mediana estatura, muito claro de tez, vivos os seus olhos azuis contrastanto com a barba negra, na qual cintilavam alguns fios fulvos com linhazinhas de cobre. Espalhafatoso de gestos, berrador, de inventiva larga, aquele transmontano de Valpaços era de aparência delicada e atraía os revolucionário por sua fama de valente, seus ares despresadores ante as fachas de políticos e a decisão com que desafiava, arremetia e quasi sempre ficava da melhor.
Exercendo o professorado na Escola Moderna, mas, mal se adrejava entender, como podia ser mestre o turbulento que sempre se mostrava e o falho de exames de cursos de categoria oficial?
Contavam-se dele proezas de monta nas horas em que os nervos o sacudiam. Batera-se, em fúria, contra uma turba, no teatro da Rua dos Condes; no caminho de Linda-a-Pastora, vindo de uma reunião desaviera-se com um dos revolucionários e increpara-o em termos do outro puxar da pistola e ameçá-lo. Correra para ele e, ao segurarem-no tanta força dispendera entre o grupo, que só se quedara ao sentir o braço deslocado; fora Sargento em Cavalaria 7, e espancava os recrutas nos dias sombrios das suas cóleras, quando naturalmente se lembrava da má sina do seu viver.
Em Lisboa, nas Escadinhas da Mouraria, N.º 4, quarto andar, já viúvo, instalara-se lá com os filhos - Elvira e Manuel -, que a avó materna cuidava. Sentava-se com o produto das suas lições, andava sempre limpo e, bebendo o seu "cognac" no Café Gelo, rodeava-se dos que lhe apareciam falando a linguagem rebelde do seu agrado. Não escolhia. Precisava de um auditório para as suas falácias e, gesticulando, fuzilando os olhares, mostrando-se, ora arrebatado ora desdenhoso. Buíça tornara-se uma fisionomia familiar do Gelo, café este que apesar do seu título frio, era um vulcão de rebeldias.
O último feito da sua existência, todos nós o sabemos, foi um nefando crime, facto que encheu de desolação as douradas páginas da nossa luminosa e épica história. Devemos contudo considerar que os braços do cruel regicídio foram abatidos, Buíça e o Costa pagaram com as suas vidas as vidas que roubaram.
E os cúmplices?
Cá por estas terras ainda houve quem lembrasse o Buíça e chorasse a sua desventura. Foi a tia Luisa Penso, pobre velhinha octogenária, amiga de Maria Barroso que, entre soluços mal reprimidos, dizia que fora ela quem trouxera o Buíça das Aguieiras e que este era um menino muito bonito.
Fonte: citação de Padre João da Ribeira (revista Aquae Flaviae) por José Lourenço Montanha de Andrade, in Valpaço-lo-Velho
Foto de Manuel Buíça in http://www.laicidade.org
A carta-testamento
A cópia da carta-testamento supostamente redigida por Manuel Buíça a 28 de Janeiro de 1909, quatro dias antes do regicídio [1] e o respectivo teor [2] são os que se seguem:
"Manuel dos Reis da Silva Buiça, viuvo, filho de Augusto da Silva Buiça e de Maria Barroso, residente em Vinhaes, concelho de Vinhaes, districto de Bragança. Sou natural de Bouçoais, concelho de Valpassos, districto de Vila Real (Traz-os-Montes); fui casado com D.Herminia Augusta da Silva Buíça, filha do major de cavalaria (reformado) e de D.Maria de Jesus Costa. O major chama-se João Augusto da Costa, viuvo. Ficaram-me de minha mulher dois filhos, a saber: Elvira, que nasceu a 19 de dezembro de 1900, na rua de Santa Marta, número... rez do chão e que não está ainda baptisada nem registada civilmente e Manuel que nasceu a 12 de setembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria, número quatro, quarto andar, esquerdo e foi registado na administração do primeiro bairro de Lisboa, no dia onze de outubro do anno acima referido. Foram testemunhas do acto Albano José Correia, casado, empregado no comércio e Aquilino Ribeiro, solteiro, publicista. Ambos os meus filhos vivem commigo e com a avó materna nas Escadinhas da Mouraria, 4, 4º andar, esquerdo. Minha família vive em Vinhaes para onde se deve participar a minha morte ou o meu desapparecimento, caso se dêem. Meus filhos ficam pobrissimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Peço que os eduquem nos principios da liberdade, egualdade e fraternidade que eu commungo e por causa dos quaes ficarão, porventura, em breve, orphãos. Lisboa, 28 de janeiro de 1908. Manuel dos Reis da Silva Buiça. Reconhece a minha assignatura o tabelião Motta, rua do Crucifixo, Lisboa".
[1] in http://tt08.blogspot.com/2009/10/ainda-o-testamento-de-manuel-buica.html (retirado do site da Fundação Mário Soares)
[2] in http://veritas.blogs.sapo.pt/arquivo/1078876.html
Especulações possíveis
Segue-se uma das especulações a respeito da autenticidade do documento, do envolvimento de Aquilino Ribeiro na conjura ou da possibilidade da sua relação específica com o acontecimento de 1 de Janeiro.
Ontem, por esta hora, escrevia sobre o espanto que me causara a leitura da transcrição da Declaração de Manuel Buiça (autor dos disparos que a 1 de Fevereiro vitimaram o Rei D. Carlos e o seu filho e sucessor Príncipe D. Luís).
Recordando o que então escrevi - depois de ler a transcrição dessa Declaração, supostamente efectuada perante Tabelião quatro dias antes do dia do atentado, ou seja a 28 de Janeiro, estranhava:
a) Que o que ela tínha de anúncio da intenção de cometer um crime não fosse percebida pelo próprio oficial público que é o Tabelião;
b) Que Aquilino Ribeiro e outro tivessem tido intervenção como testemunhas da mesma declaração, associando-se como possível cumplice de forma infantil;
c) Que alguém produzisse antes dos factos e sem saber qual o seu desenlace, um documento que ficaria em poder de terceiros e que poderia constituir a prova provada da sua participação dos factos a acontecer, para além de poder desencadear a vigilância que comprometesse a viabilidade do plano.
Recordando o que então li e está escrito no livro "A Maçonaria e a Implantação da República" (pp. 229): "Recorde-se ainda que Manuel Buiça fizera testamento no dia 28 de Janeiro - «Apontamentos indispensáveis se eu morrer»: «Meus filhos ficam pobríssimos não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e a compaixão pelos que sofrem. Peço que os eduquem nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade que eu comungo e por causa dos quais ficarão, porventura em breve, orfãos."» Depois de transcrever essa parte da "Declaração" os autores do livro (Alfredo Caldeira e António Lopes) escreveram: "Serviram de testemunhas Aquilino Ribeiro, publicista, e Albano José Correia, empregado do comércio. O professor tinha dois filhos, Elvira, nascida em 1900, e Manuel, nascido e registado em 1907.".
Ontem e hoje andei um pouco às voltas com isto, fui desfiando os rumores da participação de Aquilino no atentado, fui encontrando quase sempre os mesmos argumentos e até um pedaço de documento atribuído ao espólio pessoal da Rainha D. Amélia, segundo o qual a esposa de um juiz de 1911 teria indicado àquela o nome de Aquilino como sendo um dos que aguardava no Largo do Corpo Santo pela eventualidade do insucesso da acção de Buiça e Alfredo Costa.
Porém a estranheza daquela Declaração continuava a sobrepor-se ao mundo novo de factos que começava a desenrolar-se a cada vez que puxava uma ponta do novelo.
Hoje, encontro cópia da Declaração em questão e da mesma resulta no essencial o seguinte:
a) Que Aquilino Ribeiro não foi testemunha (pelo menos oficial) da mesma e que só é referido no seu texto porquanto terá sido sim testemunha no registo civil do filho (Manuel) de Manuel Buiça;
b) Que a Declaração em questão não foi reconhecida (a letra e a assinatura de Manuel Buiça) pelo Tabelião no dia 28 de Janeiro de 1908 mas sim no dia 22 de Agosto desse mesmo ano, ou seja, mais de seis meses após a morte do próprio Buiça.
c) Que apesar da Declaração estar assinada com data de 28 de Janeiro de 1908 todos os seus selos, assim como a intervenção do próprio Tabelião Motta, tem a data de 22 de Agosto de 1908.
Com isto ficam afastadas todos os espantos da minha primeira estranheza que produziu uma sucessão de perguntas de que fui dando conta anteriormente e, assim, maçando como não consigo deixar de o fazer, quem teve a pachora de ir lendo o que para aqui fui deixando.
a) Qual a razão deser daquela Declaração (qual o seu objectivo?).
Se o Manuel Buiça nada tem para deixar aos seus filhos, deixa-lhes um testamento de honra?. Um testamento em que regista a fórmula da carbonária e da maçonaria "Liberdade, igualdade, fraterninade" como razão de ser para o desaparecimento do pai?"
b) qual a razão para envolver no texto directamente Aquilino Ribeiro, a quem chama de "publicista" (qualificação que não é honrosa e que confirmaria os adjectivos que alguns lhe dispensaram como "pena mercenária" ao serviço da carbonária escrevendo três fascículos do seu primeiro romance - "A Filha do Jardineiro" - em jornal que pertencia ao outro regicida, Alfredo Costa, e através dos quais pretendia denegrir a imagem do Rei D. Carlos) no texto daquela Declaração.
c) Se - como li em vários lugares - Aquilino Ribeiro ficou depositário dessa carta - como explicar que a 22 de Agosto ela tenha sido reconhecida formalmente pelo Tabelião da Rua do Crucifixo. Quando nessa data Aquilino Ribeiro já estaria em Paris, "com o seu monóculo de janota"?
d) Por último se é certa a participação de Manuel Buiça numa intentona ocorrida precisamente a 28 de Janeiro de 1908 ("Intentona da Biblioteca") será que essa Declaração foi escrita visando a sua participação nessa acção e não no atentado de 1 de Fevereiro?
Esta última hipótese parece ganhar todo o sentido se tivermos presente que foi a tentativa de golpe agendada para 28 de Janeiro (na sequência da prisão de diversos líderes republicanos, entre os quais João Chagas) que desencadeou o Decreto fatídico para o Rei D. Carlos, através do qual o Governo de João Franco reagiu à descoberta desse mesmo golpe, em consequência do qual se realizaram diversas prisões e diversas fugas. Manuel Buiça esteve envolvido nessa tentativa de golpe que visava, também, a eliminação de João Franco. Logo, o mais provável é que a Declaração (a ter sido escrita por Manuel Buiça) tivesse em vista os acontecimentos de 28 de Janeiro e tivesse mesmo já sido escrita quando se temia que o golpe não triunfasse. Faz mais sentido que no próprio dia do golpe Manuel Buiça tenha escrito o que escreveu do que relacionar essa Declaração com o que aconteceu quatro dias depois, a 1 de Fevereiro.
Quanto ao resto, nomeadamente, quanto à razão pela qual a carta acaba por ser reconhecida mais de seis meses depois pelo Tabelião Motta, teria de se apurar quem a conservou e porquê. Uma coisa parece provável: quem procedeu ao seu reconhecimento (seis meses depois da morte quer do Rei quer do autor da Declaração) pretendeu associar aquela aos acontecimentos de 1 de Fevereiro e, eventualmente, associar a estes o próprio Aquilino Ribeiro. Mas é só - mais uma vez - uma especulação. Por outro lado sabe-se que foi realizada uma subscrição pública a favor dos filhos de Manuel Buiça, podendo também ser essa a razão pela qual a carta foi reconhecida e dada a conhecer, tornada pública como o foi.
Tiago Taron, in http://tt08.blogspot.com/ idem, 6 de Outubro de 2009
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