terça-feira, 19 de abril de 2011

505.º Aniversário do Massacre dos judeus de Lisboa

Por Leonel Salvado

Uma das duas únicas gravuras sobreviventes ao terramoto de 1755 e ao incêndio da Torre do Tombo: “Da Contenda Cristã, que recentemente teve lugar em Lisboa, capital de Portugal, entre cristãos e cristãos-novos ou judeus, por causa do Deus Crucificado| http://pt.wikipedia.org

Trata-se de um dos mais dramáticos e delicados acontecimentos da História de Portugal, também designado por “Matança da Páscoa de 1506”, de que não se faz eco a memória colectiva do povo português, não se encontra a justa referência nos manuais escolares de História existentes, em qualquer dos níveis de escolaridade, e continua a ser, desde há cinco séculos, um “pedaço de História” que merece a atenção de um círculo muito restrito de historiadores. A Historiografia situa o início do vergonhoso massacre no dia 19 de Abril de 1505. Só a 23 de Abril de 2008 foi erguido em Lisboa, no Largo de S. Domingos, próximo do Convento desta ordem, onde teve início o triste evento, um monumento em homenagem aos judeus mortos em 1506 nesta cidade.

Monumento em homenagem aos judeus vítimas do massacre de 1506, Lisboa | foto: SergioPT | http://pt.wikipedia.org
(clique sobre a imagem para aumentá-la)

A cinco séculos de distância, este monumento que se transformou em ponto de encontro de estrangeiros encontra-se, ironicamente, perto de um outro monumento em homenagem ao catolicismo e de um mural onde a frase “Lisboa, cidade da tolerância” pode ser lida em 34 línguas.


Os antecedentes

A 23 de Março de 2011 publicámos aqui no Clube de História de Valpaços um artigo que entendemos ser de interesse e relevância local e regional dedicado à “Expulsão dos judeus de Castela e o reforço das comunidades criptojudaicas em Trás-os-Montes”. Ora, uma grande parte dos cerca de 90 000 judeus entrados em Portugal em consequência da sua expulsão pelos reis católicos, Isabel de Castela e Fernando de Aragão, através do “decreto de Alhambra” de 31 de Março de 1492, permaneceram no reino, sob as condições impostas pelo monarca português, D. João II, nos termos a que nos referimos no artigo atrás mencionado, estabelecendo-se um prazo de oito meses para que os que não respeitassem essas condições abandonassem o reino. Desde então, e posto que em alguns lugares a população aceitou mal a clemência régia e constatando-se ainda que muitos judeus não possuíam condições financeiras para embarcar, o que os levava a simular a conversão para serem poupados a afrontas e punições, o monarca recorreu à conversão forçada de modo a pôr termo à onda de agitação social que já se sentia agravar-se contra eles. Começavam então as bárbaras provações por que passaram as famílias judaicas a quem se apartavam, à força, os filhos menores para serem baptizados e conduzidos à ilha de S. Tomé, onde se fariam bons cristãos e povoadores, longe da influência da doutrina mosaica e da língua e cultura hebraicas. Este procedimento “considerado bárbaro à luz do nosso tempo” levou o historiador Joaquim Veríssimo Serrão, na esteira de outros historiadores, a tecer a seguintes comentários:

“A odisseia dos judeus que constitui uma página negra da história ibérica dos fins do século XV, serviu de tema a Samuel Usque para a dolorosa evocação do sofrimento dos seus irmãos de raça. O ressentimento secular dos cristãos está longe de justificar o clima de intolerância que então dominou o País e que foi apenas e que foi apenas o prólogo de violências ainda mais cruéis que no tempo de D. Manuel viriam a atingir a raça proscrita.”

J. V. Serrão, História de Portugal, Verbo, 3ª ed. revista, 1980, vol II, p. 262

De facto, foi já no reinado de D. Manuel que a situação se complicou para as comunidades judias por força não da sua vontade pessoal (no início do seu reinado D. Manuel adoptara uma política de grande tolerância em relação aos judeus, chegando a conceder a liberdade aos que haviam recaído para a condição de escravos por vontade de D. João II) mas do compromisso a que se vira obrigado devido ao seu casamento com D. Isabel de Aragão em 1497 nos termos de cujo contrato os judeus eram considerados “hereges”, e, sobretudo após o seu casamento, no ano seguinte, com D. Maria de Aragão, posto que foi em cumprimento de uma das cláusulas deste segundo matrimónio que “o Venturoso” requereu a instalação da Inquisição em Portugal, a qual só viria a ser autorizada por decisão papal em 1531, anulada um ano depois e restabelecida, a pedido de D. João III, em 1536.  

Ainda que com grande hesitação, dado o parecer dos seus conselheiros de que a saída dos judeus empobreceria o corpo social da Nação (J. V. Serrão, ob. Cit., Id), logo no ano de 1497, D. Manuel estabeleceu o prazo de Janeiro a Outubro para que os não convertidos abandonassem o Reino, mas ordenou também que fosse dada continuidade à prática iniciada pelo seu antecessor para que àqueles fossem tirados os seus filhos com idade inferior a catorze anos, espalhados pelo País e levados ao baptismo. Ordenou ainda a condução forçada de muitos outras famílias para Lisboa, onde foram forçados ao baptismo, o que deu origem ao conceito de “cristão-novo” e ao estigmatismo que logo se lhe associou. Tal foi a ardilosa solução encontrada pelo monarca, tantas vezes sublinhada pelos historiadores, para que, sem aparente despeito pelo compromissos diplomáticos e matrimoniais assumidos com o reino vizinho, pudesse evitar a saída dos Judeus do Reino e assim manter a sua prosperidade que, como se sabe, era em grande parte assegurada pelas imensas fortunas e dinamismo económico e comercial de que eram detentores os “cristãos-novos”, sobretudo em Lisboa, então um dos principais centros cosmopolitas da época. Foi também nesse sentido que a 30 de Maio de 1498 foi aprovada a medida régia que estabelecia um prazo de vinte anos para que os judeus conversos não fossem molestados pelos cristãos. Porém, estas medidas não sortiram o efeito desejado devido à inabalável desconfiança da população perante os “cristãos-novos”, acusados de continuar secretamente a praticar o seu culto ancestral tanto em família como em comunidade, o que na maioria dos casos correspondia à verdade. Parafraseando o já citado historiador Joaquim Veríssimo Serrão (Ob. Cit. Vo lIII, p. 17), não se confirmou, como a coroa pensava, “que o tempo seria condição bastante para o apaziguamento social que se impunha.”


O Massacre e suas consequências

Existem indicadores de que por todo o País surgiam pequenos conflitos entre as comunidades de cristãos e conversos ou pseudoconversos. Mas foi em Lisboa, na Pascoela de 1506, que a situação se tornou mais grave, transformando-se num movimento insurreccional contra os judeus que durante três dias ceifou a vida a cerca de 2000 pessoas, segundo o cômputo indicado por Alexandre Herculano em Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal e subscrito por Veríssimo Serrão (Ob. Cit., Vol. 3, p.18). Uma tragédia originada pela explosão da recalcada animosidade da população lisboeta, despoletada por um pequeno incidente e alimentada pela adesão aos amotinados de alguns nautas estrangeiros de passagem pela cidade e pela incitação à violência por dois frades dominicanos. Uma das descrições mais próximas do tempo em que sucedeu este arrepiante acontecimento, para além da de Garcia de Resende, é a que nos legou Damião de Góis na “Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel da Gloriosa Memória”. Conta-nos este cronista quinhentista:

«No mosteiro de São Domingos da dita cidade estava uma capela a que chamava de Jesus, e nela um crucifixo, em que foi então visto um sinal, a que davam cor de milagre, com quanto os que na igreja se acharam julgavam ser o contrário dos quais um cristão-novo disse que lhe parecia uma candeia acesa que estava posta no lado da imagem de Jesus, o que ouvindo alguns homens baixos o tiraram pelos cabelos de arrasto para fora da igreja, e o mataram, e queimaram logo o corpo no Rossio. Ao qual alvoroço acudiu muito povo, a quem um frade fez uma pregação convocando-os contra os cristãos-novos, após o que saíram dois frades do mosteiro, com um crucifixo nas mãos bradando, heresia, heresia, o que imprimiu tanto em muita gente estrangeira, popular, marinheiros de naus, que então vieram da Holanda, Zelândia, e outras partes, ali homens da terra, da mesma condição, e pouca qualidade, que juntos mais de quinhentos, começaram a matar todos os cristãos-novos que achavam pelas ruas, …tirando-os delas de arrasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres, e filhas, os lançavam de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade, e era tamanha a crueza que até nos meninos, e nas crianças que estavam no berço a executavam, tomando-os pelas pernas fendendo-os em pedaços, e esborrachando-os de arremesso nas paredes. …tornaram terça-feira este danados homens a prosseguir a sua crueza, mas não tanto quanto nos outros dias porque já não achavam quem matar, pois todos os cristãos-novos que escaparam desta tamanha fúria, serem postos a salvo por pessoas honradas, e piedosas que nisto trabalharam tudo o que neles foi.»

In http://pt.wikipedia.org

Sabemos pelo mesmo Damião de Góis das medidas de justiça régia sobre os implicados no motim e das consequências que daí resultaram nas relações sociais entre as duas comunidades, através das seguintes palavras de Veríssimo Serrão:

Logo que soube do «alevantamento», D. Manuel, que se encontrava em Avis a caminho de Beja, mandou a Lisboa o Prior do Crato e o barão de Alvito com amplos poderes para punir os culpados. Os chefes do motim, em número de 50, receberam o castigo da forca, sofrendo os dois religiosos a pena do garrote. Por carta régia de 22 de Maio retirou-se à capital uma parte dos seus antigos privilégios, destituíram-se funcionários, levantou-se devassa a outros e suspenderam-se as eleições na Casa dos Vinte e Quatro, numa forma de exemplar condenação do bárbaro crime de que Lisboa fora teatro. A culpa do malefício recaía também sobre os «outros moradores & da dita cidade e termo della» que não se tinham oposto aos «muitos insultos & danos» que ensanguentaram a capital.”

Joaquim V. Serrão, Ob cit., Vol. III. pp. 18-19

Tais medidas foram de molde a abrir um ambiente de maior tolerância em relação aos judeus, concedendo-se-lhes a possibilidade de abandonar o Reino por sua livre vontade com todos os seus haveres e proporcionando aos que ilegalmente se ausentaram a oportunidade de regresso sem qualquer castigo. Sobrevindo a bonança obteve-se a reconciliação, visto que a maior parte deles decidiu permanecer em Portugal e foi reposta a paz religiosa até ao final do reinado de D. Manuel. Com a subida ao trono de D. João III repetiu-se a cisão entre cristãos e conversos e agravou-se o ressentimento secular dos cristãos a que Joaquim Veríssimo Serrão aludiu no primeiro excerto que dele transcrevemos neste post. A amargurada odisseia dos judeus  em Portugal ainda estava bastante longe do seu termo.

2 comentários:

  1. Espectacular texto!

    Desconhecia este massacre...
    Obrigada
    cmps

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  2. Obrigado por nos continuar a visitar Leonor Moreira. Os melhores cumprimentos para si.
    Leonel Salvado

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