sábado, 28 de maio de 2011

Trás-os-Montes e alguns dos grandes nomes da expansão ultramarina - I

Por Leonel Salvado

A relação entre a epopeia dos descobrimentos, a exploração do “novo Mundo” e a Província de Trás-os-Montes há muito sustentada pela tradição em algumas regiões, parece subsistir em diversas publicações recentes, sendo, conforme os casos, admitida por, alguns autores como uma mera possibilidade e defendida por outros como uma realidade cientificamente fundamentada. A questão prende-se com a propalada naturalidade transmontana de algumas das grandes figuras da História da Expansão ultramarina da Península Ibérica: Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães e, talvez o menos conhecido, João Rodrigues Cabrilho, navegador e explorador do continente americano.


Diogo Cão

Ficou o navegador português do século XV com este nome para a História como um dos pioneiros na descoberta e exploração da costa sudoeste africana que, a mando de D. João II, realizou duas viagens nessa área entre 1482 e 1484 e entre 1485 e 1486, tendo na primeira chegado à foz do rio Zaire avançado pelo interior do mesmo rio e alcançado as cataratas de Ielala, deixando aí uma inscrição da sua passagem na célebre pedra com esse nome e estabelecendo as primeiras relações com o Reino do Congo. Numa segunda viagem, consciente de que a foz do rio Zaire não era, como inicialmente julgara o limite meridional do continente africano prosseguiu mais para sul, chegando ao Cabo da Cruz ou Cabo do Padrão na actual Namíbia, sem lograr achar a desejada passagem para o Índico. Foi Diogo Cão quem introduziu a utilização de padrões em pedra, em vez de madeira, para assinalar as descobertas portuguesas. Apesar de não ter alcançado o Cabo que depois seria baptizado de “Cabo da Boa Esperança” e de ter sido por esse motivo caído em desgraça perante o rei, é considerado como um dos grandes heróis da epopeia dos Descobrimentos.

Mas quando e onde terá nascido este Diogo Cão?

Relativamente à primeira questão, os primeiros registos da sua existência datam do início da década de 1480 e reportam-se à primeira viagem por ele empreendida e a que atrás nos referimos, ordenadas por D. João II com o objectivo de se certificar da passagem do extremo sul do continente africano.

Quanto à segunda questão, também muito pouco se sabe a respeito da sua origem geográfica e familiar, pelo que a maior parte dos historiadores actuais se decide pela absoluta imparcialidade a seu respeito, referindo-se-lhe apenas como um navegador português do século XV. Porém, outros historiadores consagrados, embora de geração mais recuada, como é o caso de Damião Peres consentiram em tomá-lo «provavelmente como um membro de uma família radicada em Vila Real».[1] E actualmente esta possibilidade ainda parece longe de ser descartada em publicações nacionais e regionais, impressas e outras digitais on line na Internet, na própria “Wikipédia, a enciclopédia livre”, na Infopédia e num número significativo de páginas e blogues, onde a expressão «nascido provavelmente na região de Vila Real» surge amiúde. No Primeiro Volume do “Dicionário dos mais Ilustres Transmontanos e Alto Durienses”, por exemplo afirma-se com aparente convicção que Diogo Cão «era descendente de uma família de Vila Real» que «seu pai e avô foram militares de carreira ao serviço da Pátria» e que «o avô distinguiu-se na guerra da independência e o pai no reinado de D. Afonso V.»[2] Mas esta relação de Diogo Cão, o navegador, com a família Cão de Vila Real, sustentada pela tradição, nunca mereceu a necessária concordância dos genealogistas. O insigne nobiliarista Felgueiras Gayo, autor de uma vastíssima obra que ainda hoje constitui uma base fundamental para os investigadores desta área, o “Nobiliário das Famílias de Portugal”, obra reeditada em 17 volumes entre 1938 e 1941 e pela última vez em 1989, refere-se ao navegador como tendo nascido por volta de 1450 e originário da família Cão, não de Vila de Real mas de Évora, tomando-o por filho de Álvaro Fernandes ou Gançalves Cão e neto de Gonçalo Cão, nascido ao redor de 1370.[3] Este mesmo Gonçalo Cão é também invocado como efectivamente avô do navegador Diogo Cão pelos que defendem ser este oriundo de Vila Real. Parece assim que coexistiram várias famílias Cão no reino, sem relação de parentesco entre elas. No site “Vida Vedra, magazine on line Pontevedra (categoria: cultura.es)”, encontrámos justamente uma interpretação neste sentido, ainda que noutro contexto, que passamos a trancrever[4]


«Isabel Coelho era tia paterna de Constança. Casara com Diogo Martins Cão e no ano de 1472 viviam em São Mamede de Vila Verde, na terra de Felgueiras. A documentação que chegou até aos nossos dias, é rica em informação pontual e dispersa, referenciando pessoas de sobrenome “Cão”. Porém, salvaguardando o caso de duas linhagens, uma em Évora e Vila Viçosa, e outra em Vila Real, não permite estabelecer linhas de parentesco entre os deste apelido.

Sublinhem-se contudo, três insinuantes coincidências: Fernão Pereira, senhor da Terra da Feira era, naqueles tempos, alcaide-mor de Vila Viçosa; um homem chamado Diogo Cão celebrizou-se enquanto “descobridor do Congo”, navegando as costas de África em busca da passagem para oriente, a mando do Rei D. João II; esse homem teve um filho chamado Pedro Cão que rondaria os 18 anos quando a 1 de Agosto de 1476 um Pedro Cão, “escudeiro do Conde de Caminha”, recebia uma Carta de Perdão do Rei D. Afonso V, existente no arquivo das chancelarias régias, na Torre do Tombo em Lisboa. Estas fontes de informação permitem identificar, sem risco de maior erro, a forte possibilidade do Diogo Cão navegador, ser parente próximo do Diogo Martins Cão, e que o escudeiro Pedro Cão fosse seu irmão, ou mesmo aquele seu filho.»

Posto que se tenha em conta a relação parental aqui estabelecida entre Diogo Cão, “o descobridor do Congo” com Diogo Martins Cão, residente em S. Mamede de Vila Verde, “na terras Felgueiras” que, como se sabe é uma sub-região do Tâmega, e que o filho do mesmo Diogo Cão, Pedro Cão (este nome é mesmo indicado por Felgueiras Gayo como o do primogénito do navegador) seria “escudeiro do conde de Caminha”, tais “insinuantes coincidências” no que respeita a estes indivíduos com indicações geográficas mais próximas de Vila Real do que de Évora e Vila Viçosa poderão ser mais do que simples coincidências. Existe, portanto, uma séria probabilidade de Diogo Cão ter sido efectivamente oriundo de Vila Real.


Outras dúvidas se têm colocado a respeito da data e local do seu falecimento. Baseando-se numa expressão da carta de Henricus Martellus de 1489, referindo-se à Serra Parda, na zona do Cabo da Cruz que foi o limite do território descoberto por Diogo Cão («diegus canus... hic moritur») Joaquim Veríssimo Serrão considerou a hipótese de o navegador ter falecido por esse altura e nessa zona, mas logo descartou esta possibilidade por haver dúvidas «se a expressão não se deve antes aplicar ao termo montanhoso do local.» Aproveitando o testemunho de Rui de Pina, o mesmo historiador encontra razões para acreditar que o navegador voltou ao reino após a sua derradeira missão e por não ver concretizado o seu primordial objectivo, que era o de atingir a ponta sul de África e, enfim, a passagem para o Oriente, foi posto à margem por D. João II e votado ao esquecimento, o que explica o facto de o cronista não mais evocar o seu nome. Acrescenta ainda Veríssimo Serrão que «não se provando que o seu túmulo esteja na sé de Vila Real, de onde a tradição diz que era oriundo, permanece assim o mistério do olvido que cobriu o seu nome após a segunda viagem.» [5]  




Estátua de Diogo Cão em Vila Real |
 | Fonte: http://www.flickr.com/photos/samuel_santos/4970110241/


Referências:

[1]VERBO - ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA, vol. 4, 1966, p. 874.

[2] DICIONÁRIO DOS MAIS ILUSTRES TRASMONTANOS E ALTO DURIENSES, Coordenado Barroso da Fonte, Vol I, Editora Cidade Berço | Disponível em http://www.dodouropress.pt

[3] GAYO, Felgueiras, Nobiliário das Famílias de Portugal, vol. III, 2.ª ed., Braga, 1989, p. 174

[4] LINK


[5] SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, Verbo. vol. II, 3.ª ed. revista, 1980, p. 181

4 comentários:

  1. A informação de Therese Schedel – do mistério que rodeia o roteiro de Diogo Cão, insere ainda:

    «…a não existência dum roteiro de Diogo Cão tem sido um mistério apaixonante».

    «...O navegador desapareceu durante a sua segunda viagem».

    «...Os tripulantes que regressaram a Portugal contaram que Diogo Cão se tinha embrenhado terra adentro e nunca mais aparecera».

    “Muito possivelmente, talvez tivesse sido devorado por um tigre, quem sabe “.

    “Ora o que decerto não aconteceu foi o capitão levar nesse passeio fatal o roteiro debaixo do braço”.

    “…O roteiro era um caderno no qual os capitães e pilotos anotavam dados referentes à navegação, era um diário de bordo. E regressado a Portugal. O que, aparentemente, não sucedeu. Ou regressou e desapareceu depois de ter regressado? Eis o mistério”

    As viúvas dos homens desaparecidos no mar oceano, recolhiam com frequência aos mosteiros e conventos existentes em Portugal?! Anotavam os motivos pela opção da clausura?! Therese, recolheu tais informações em alguma biblioteca de mosteiro ou convento? Permanece a dúvida.

    Falta-nos apenas aquilo que mostra ou confirma a verdade de um facto.

    “Diogo Cão jamais regressou a terras de Portugal”. “Ficou por terras da Namíbia”.

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  2. Benvindo,caro anónimo:
    Gratos pela abordagem do "apaixonante mistério" que envolve a inexistência de um roteiro e o desaparecimento de Digo Cão e pelas transcrições aduzidas de Schedel que compõem o seu comentário e nos parecem interessantes e talvez seja de ponderar uma actualização deste post com base nele. Mas, afinal, tal mistério apaixonante,como todos os outros, persiste, não lhe parece? Mudando de assunto, posto que o seu comentário nos tenha parecido verdadeiramente construtivo, não entendemos porque não revela a sua identidade? Mais um mistério!Volte sempre, participe sempre desta forma, mas assine.
    Os meus cordiais cumprimentos.
    Leonel Salvado (Admn. do CHV)

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  3. Caro Sr. Leonel Salvado

    É necessário elucidar alguns pontos fundamentais, sobre o navegador português " Diogo Cão,Caão ou Cam":

    1º - Quantas viagens foram efectuadas por Diogo Cão para além da latitude 2 Sul, datas e duração, não existem roteiros (diários) de bordo.(Pelos padrões colocados ao longo da costa africana, foram apenas duas viagens de exploração!!)
    2º - O mapa ou carta de “Cristóforo Soligo” de 1485 ou 1486, revela pela 1ª vez a costa ocidental africana, depois da lat. 2º Sul, o que corresponde à 1º viagem de Diogo Cão.(Qual o ponto da costa marítima mais a Sul atingido!!!)
    3º - Opina-se, das inscrições das Pedras de Yelala, a montante de Matádi - no rio Zaire ou Congo terem sido gravadas no regresso da 2ª viagem.(Há indícios que foi no retorno dessa viagem que efectuou as gravações!!!)
    4º - Segundo o Insulário ou mapa de Henricus Martellus de 1489 o limite da 2ª viagem é a serra Parda, a Sul do Cabo da Cruz (Cape Cross de hoje) onde se crê que o navegador falecera ”hic moritur”.
    (Se os cosmógrafos de Badajoz interpretam o “ hic moritur” como “morre”, isto quer dizer que na naquela época foi este o sentido corrente da expressão).
    5º - João de Barros afirmou, que Diogo Cão tornou a trazer Caçuta como embaixador do Manicongo, alguns filhos dos cortesãos para serem instruídos na Fé Cristã.(Rui de Pina, cronista acrescenta na sua crónica todos eles foram recebidos pelo rei Português em Janeiro de 1489.É importante sublinhar a data [ Janeiro de 1489], a embaixada congolesa, não pode ter vindo nos navios de Diogo Cão!)
    6º - Para justificar o desaparecimento do navegador, vários autores afirmaram que Diogo Cão foi votado ao ostracismo pelo rei D. João II, uma vez que não encontrou a passagem para o oceano Índico, ainda que tivesse prestado relevantes serviços ao reino!(Não tem qualquer fundamento...)
    7º - Por último, o enigma que envolve a morte de Diogo Cão.

    (Queira-me desculpar, por manter o anonimato, não vejo de momento qualquer interesse para o fazer...) Obrigado. Os meus melhores cumprimentos

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  4. No ponto 3. (Há indícios que foi no retorno dessa viagem que efectuou as gravações!!!) deve ler-se: (Há indícios que não foi no retorno dessa viagem que efectuou as gravações!!!).

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