Por Leonel Salvado
Nota prévia: Poder-se-á concluir, pelo conhecimento da realidade actual face ao teor do documento que a seguir transcrevo, que houve uma natural transformação da estrutura humana e material da povoação de Santa Valha entre 1758 e a actualidade. Convém todavia observar que as transformações que se inferem das informações do pároco memorialista, o Abade Domingos Gonçalves, autor do manuscrito, não deverão em todos os aspectos merecer a mesma credibilidade, uma vez que em alguns desses aspectos se denota uma certa falta de rigor informativo do mesmo prelado, designadamente na identificação dos bairros existentes na sua época e que hoje mantêm, grosso modo, os nomes, bem como na localização das várias fontes de água a que o mesmo prelado alude, a maioria das quais preserva também os mesmos nomes de há 250 anos. Em certos casos parece ter havido uma evidente desorientação por parte do Abade que não foi capaz de evitar alguns lapsos que me parecem evidentes, problemas estes relativamente aos quais entendi ser meu dever advertir os leitores mas sem deixar de salientar também que tais problemas não diminuem substancialmente o valor deste curiosíssimo documento historiográfico. Alguns topónimos estão intencionalmente transcritos na sua forma original e alguns outros são de carácter suplectivo hipotético pessoal, da minha parte, dada a sua fraca legibilidade ditada tanto pela caligrafia do autor como pela má preservação do documento e, portanto, sujeitos, estes últimos, a eventual rectificação.
MEMÓRIAS PAROQUIAIS, 1758, Tomo 34, SANTA VALHA, Monforte de Rio Lima (leia-se Monforte de Rio Livre).
[Cota actual: Memórias paroquiais, vol. 34, n.º 67, p. 601 a 606]
Este tal lugar fica na Província de Trás-os-Montes, Bispado de Miranda, Comarca de Torre de Moncorvo, Termo da Vila de Monforte, Freguesia de Santa Eulália. É d’el Rei, Nosso Senhor, ao presente e sempre o foi.
Tem tal lugar, cento e quinze vizinhos e trezentas e noventa pessoas.
Está o dito lugar situado em um vale, entre dois montes bastantemente levantados, um para a parte do Norte, chamado do [Ermitão?] e revestido de castanheiros de demasiada altura, outro para a parte do Meio-dia, chamado Crasto, revestido de pinheiros, castanheiros, sobreiros e de mais algumas variedades de árvores silvestres.
Não se descobrem dele povoações algumas, por ficar muito baixo.
Não tem termo seu, pois está sujeito ao termo da Vila de Monforte e dista desta duas léguas.
A paróquia está no meio do lugar e tem suas anexas ou quintas, uma para a parte da quinta chamada da Paradelinha, que tem uma capela de Santo Antão que dista da povoação três quartos de légua, outra anexa para aparte da quinta chamada do Calvo, que tem uma capela de Santo António que dista da paróquia dois quartos de lágua e outra anexa para a parte da quinta chamada do Gorgoço, que tem uma capela de São Bartolomeu que dista da paróquia meia légua. Tem esta, nove vizinhos e quarenta pessoas; o termo do Calvo, três vizinhos e dezassete pessoas e o de Paradelinha, vinte vizinhos e sessenta pessoas.
O orago é Santa Eulália que está no Altar-mor. Tem quatro Altares, o mor e dois colaterais, um da parte da entrada ,de Nossa Senhora do Rosário, e outra da parte do Meio-dia, à direita, do mártir São Sebastião e uma capela ao lado esquerdo, do Santo Cristo com uma escada para o corpo da igreja, administrada por Jerónimo de Morais Castro, Morgado da Teixugueira. Há mais duas capelas dentro do povo, uma defronte da matriz, de São Miguel, e outra de Santa Maria Madalena, no bairro da Madalena, administradas as duas com as esmolas da vizinhança. Tem mais outra, de Santo António, no bairro assim chamado, que administra esta o Morgado António José de Morais Castro. E tem duas Irmandades, uma das Almas e outra de Nossa Senhora do Rosário.
O pároco é abade, apresenta-o o Padroado e tem de renda, com a patriarcal, um conto [1 000 000 de réis].
As ermidas ou capelas são três, dentro do lugar, de que já falei. A elas não acode nunca gente em romagem senão, por acaso, alguma vez.
Os frutos da terra em maior abundância são pão centeio e vinho tinto de cepa, delicioso, e algum milho maíz, feijões pretos e brancos e fradinhos, muita castanha, alguma fruta de nozes, peras, ameixas de várias espécies, figos de várias castas, cerejas, ginjas pequena, muitas couves, alhos, cebolas, muita hortaliça galega e lenha de carvalhos e castanheiro, muita lenha de azevinho para o fogo, muitos lameiros de melões e melancias, queijos de várias castas e algum mel e gado ordinário miúdo.
Não tem juiz ordinário nem câmara e, por esta razão, está sujeita ao juiz ordinário e câmara da Vila de Monforte.
Faz-se feira em uma anexa de Gorgoço, de que já fiz menção, em dia de São Bartolomeu, aonde acode a vizinhança a comprar e vender espadelas de linho em rama, paninhos, vinho e pão branco e tendas de mercadorias. E dura somente quatro horas.
Dista, o dito lugar, de Miranda do Douro, cidade capital, dezasseis léguas, e de Lisboa oitenta léguas.
Tem o dito lugar três bairros. Um chama-se o Bairro [sic], tem duas fontes, uma chamada dos Alarigos, fresca de Verão e quente de Inverno e deliciosa, pois é fresca e gostosa, nasce no [rio?] e está cercada de castanheiros, álamos pretos, ciprestes, parreiras e outras árvores silvestres; outra chamada do Vilar, muito mais notável por fresca e saborosa, está cercada de castanheiros, figueiras, amieiros, marmeleiros e pinheiros e nasce numa penha. Outro bairro chama-se de Sobreiró e não tem fonte alguma. Outro, chamado de Outeiro, tem duas fontes, uma chama-se de Sobreiró e é de água também fresca e está cercada de salgueiros, macieiras e vinhas e outra chama-se da Regaça e nasce em pedra. Tem mais outros três bairros, um chamado do Pontão e tem este uma fonte que se chama a fonte do Pontão, nasce em [lodo] e é a maior, outro chamado da Igreja tem uma fonte chamada da Igreja por servir para uso da mesma igreja, outro chama-se o bairro da Madalena e não tem fonte alguma.
E assim são seis bairros e cinco fontes [sic], todas perenes e se renovam com muita abundância e nunca secaram. Com elas se rega e fertiliza pastos, Linhares e prados e além destas cinco fontes comuns tem o Lugar mais de dez fontes particulares.
Junto da fonte de Vilar se acha e cria um pinheiro maior que tem de grosso trinta e dois palmos e ocupa, com a copa da rama, dois alqueires de centeio de sementeira, além dos mais que estão dentro da matriz.
Tem fora, pelo termo, infinito número de fontes frescas e de algumas onze […] entre as quais há uma de rara qualidade que se chama a fonte da Cruz cuja água contém o bem de desinquinar os intestinos […] que é o mesmo que a fonte [Puideira?], que será esta do lugar um quarto de légua.
Não padeceu ruína alguma no terramoto [de 1755].
No que respeita à Serra
Nada, por não haver nesta terra serra.
Rio
Neste lugar de Santa Valha somente há quatro ribeiras, uma chamada o rio Calvo que nasce no lugar de [Lomba?] e suas montanhas. Nasce brando e pequeno e corre todo o ano. Entra nele uma ribeira de Alvarelhos por baixo do lugar de Tinhela, duas léguas distante da nascente. Não é rio de barcas nem capaz para isso. É de curso arrebatado em toda a sua distância. Corre de Norte para o Meio-dia. Cria muitos peixes chamados escalos. Nas margens se cultivam muitas delas de vinhas, terras, prados e tem muitas árvores de fruto, como são castanheiros, e silvestres, como são amieiros, salgueiros, carvalhos, medronheiros e outras muitas castas de árvores silvestres. Conserva sempre o nome de rio do Calvo. Morre no rio chamado o Rabaçal, rio caudaloso, no sítio do Cachão. Tem uma cachoeira no sítio de Cachão e por essa causa não sobem os peixes chamados barbos e bogas por ele acima. Tem três pontes de pau, uma chama-se a ponte de Tinhela que está no mesmo lugar de Tinhela, outra chama-se a ponte de Agordela, na quinta de Agordela, e outra na quinta do Calvo e chama-se a ponte do Calvo. Tem perto dele infinito número de moinhos, regueiros e [olmeiros?]. Usam os povos de suas águas livremente para as culturas.
Tem o rio seis léguas desde a nascente até aonde acaba e passa por seis povos: O primeiro é Tinhela, o segundo é Agordela, o 3.º é o Calvo, o 4.º é Vale de Casas, o 5.º é Poçacos e o 6.º é o Cachão.
Não há nesta terra outras coisas notáveis de que se possa dar conta. É muito pouco o tempo para se fazer como deve.
O Padre Domingos Gonçalves
[\] Há mais três ribeiras, uma chamada a ribeira da [Roçada?] que nasce nas montanhas de Fiães, distante deste lugar légua e meia e esta mesma ribeira passa pelo Bairro da Igreja e junta-se em outra chamada a ribeira da Castanheira no sítio chamado de Armeiro e dista, uma de outra, um quarto de légua, ambas nascem nas montanhas de Fiães, ambas têm pontes de pedra e moinhos e no Inverno abunda nelas árvores de fruto nas suas margens. A outra chama-se de [Canamão?] e dista das outras um quarto de légua, tem as mesmas circunstâncias das outras, juntam-se todas em uma no sítio do [Bordalacho?], nome derivado de um peixe, tem uma ponte de pau de 4 olhais e vai-se meter no rio Rabaçal. Dista a nascente do rio três quartos de légua. Tem peixes chamados escalos.[/]
O Padre Domingos Gonçalves
[s. data]
Li com bastante atenção o manuscrito que escreveu o autor sobre a minha terra, Santa Valha. Porém, apesar de algumas irregularidades e/ou dúvidas que consegui detectar no texto de pesquisa datado de (?), considero este documento muito importante para aqueles que se interessam, tal como eu, da verdadeira história patrimonial e cultural da minha freguesia. Mais uma vez, o meu agradecimento ao “Clube de História” e particularmente aos seus representantes.
ResponderEliminarAmílcar Rôlo
Caro amigo Amílcar Rolo:
ResponderEliminarMais uma vez apraz-nos descobrir na comunidade de Santa Valha pessoas como o Amílcar (para não nomear outros senhores e senhoras)interessadas do seu património histórico e cultural e orgulhosos dele, o que vem sendo raro em outros quadrantes do concelho, sem desprimor para os que se encontram neles, pois têm o direito a escolher livremente os seus motivos de interesse e motivação. Agradeço-lhe em nome dos restantes membros do Clube de História de Valpaços o apreço que manifesta no nosso trabalho que exercemos com total abnegação. Quanto ao documento em comentário, convém que se diga que se trata de mais um de uma série de documentos manuscritos que foram lavrados em 1758 em cumprimento de uma ordem emanada do Ministério do Marquês de Pombal e dirigida aos párocos das diversas freguesias para se fazer com eles um Dicionário Geográfico Nacional, coisa que já havia sido pensada e iniciada anos antes, mas cujos manuscrito foram destruídos num incêndio provocado pelo Terramoto de 1755. Convém também que se diga que a estrutura administrativa nessa época não correspondia em grande parte à actual. Estes manuscritos são transcritos tal como foram redigidos pelos respectivos párocos, muitos dos quais não possuíam as informações necessárias para o que lhes era solicitado nos inquéritos e, por conseguinte, podem conter ou parecer que contêm inúmeras imprecisões, ou porque desajustadas à realidade actual ou pela existência de párocos-memorialistas mais ou menos prolixos no urgente cumprimento da obrigação que lhes foi imposta em responder aos mesmos inquéritos. Tratando-se portanto de um documento histórico e não historiográfico, ele vale pelo seu conteúdo e a nossa obrigação é divulgá-lo tal como foi escrito, com a introdução de algumas actualizações apenas formais (parágrafos, sinais,pontuação)e portanto apresentados com os próprios erros e incongruências que neles hoje podemos encontrar, como aliás tive o cuidado de advertir em nota prévia deste post. A rectificação de dados e informações incorrectas fica ao critério do leitor ou historiador.
Bem haja pelo interesse manifestado!
Leonel Salvado,
(Adm. do CHV)
Caro Adm. deste maravilhoso C.de H!
ResponderEliminar"Vizinhos e pessoas"....são sinónimos?
Cá ando eu por aqui a ler estas maravilhas da nossa história.
Ando a ler todas as Memórias Paroquiais, para comparar formas de escrita tão diferentes dos Párocos, assim como a geografia e "vida social" à época.
Interessantíssimo!
Estou a gostar!
cmps
leonor moreira