domingo, 8 de janeiro de 2012

Vilarandelo na rede viária do Império Romano

Por Leonel Salvado


A antiguidade da ocupação humana na área que envolve esta localidade de Vilarandelo, freguesia do concelho de Valpaços e vila desde 12 de Julho de 2011, é reconhecida em inúmeras obras de divulgação nacional e monográfica e a sua localização na referida importante Via Romana Braga-Astorga é também nelas posta em evidência.

A existência de um castro a pouca distância, a Nordeste de Vilarandelo, no Alto conhecido por Muradela (ou Muradelha) tem suscitado a convicção de que a sua antiguidade remonta à época pré-romana.

Mas é a respeito da época romana que surgem os primeiros e melhores indicadores da sua importância, tanto na toponímia como na arqueologia. Valpaços e uma larga parte das freguesias que o compõem encontravam-se no cruzamento ou passagem dessa via romana. Sob o asfalto de uma grande parte da estrada nacional que nos ligam a Chaves, Vila pouca de Aguiar e a Castro de Avelãs, de algumas estradas municipais ou perto delas, sob a vegetação, escondem-se os troços de calçadas que podemos apelidar de itinerários ou “variantes” da importante Via Romana que seguramente desde o início século III da era cristã ligava Bracara Augusta (Braga) a Asturica (Astorga), por Aquae Flaviae (Chaves).
Tem estado a ser feito um estudo minucioso por Pedro Soutinho no sentido de se obter uma reconstituição cartográfica o mais fiável possível deste e de outros itinerários das vias romanas em Portugal. Outros vestígios e achados, tais como pontes romanas ou medievo-romanas e marcos miliários1 associados a esses troços, têm sido de grande valor para a sua reconstituição, ao mesmo tempo que servem para assinalar a importância que os mesmos troços tiveram na complexa rede viária de então, bem como a importância, pelo proveito que delas retiravam, dos povoados hispano-romanos junto das quais elas passavam. E ainda que o topónimo Vilarandelo seja mais recente, nascido talvez nos alvores da nacionalidade, ou antes desta, de um aglomerado de pequenos “vilares” de que os actuais cinco bairros da vila podem remanescer, como sugere Veloso Martins,  avulta a existência de uma elevação natural de que a tradição popular conserva o nome de Cividade2, de onde deriva o nome cidade e que era frequentemente usado na época romana para designar núcleos urbanos de certa importância administrativa. O sítio do Alto da Cividade continua por muita gente a ser identificado como o mesmo sítio da Muradela e, portanto, do aludido castro de Virarandelo, apesar da objecção colocada por Adérito Medeiros Freitas na “Carta Arqueológica do Concelho de Valpaços”, segundo o qual «os locais de Muradella e Cividade não correspondem ao mesmo sítio». Se a primeira interpretação for a mais acertada, será de concluir pela sugestão de que o vetusto castro de Vilarandelo terá sido administrativamente promovido na época romana à categoria de “civitatem”, no singular e sem genitivo, isto é, sem a indicação particular do povo que a compunha.

Quanto ao enquadramento de Vilarandelo no traçado viário da época romana estabelecido nesta região do concelho de Valpaços, não se torna francamente sustentável a opinião manifestada por A. Veloso Martins na Monografia de Valpaços ao afirmar, a propósito de Vilarandelo, que «aqui passava uma notável via militar romana, que se dirigia de Aquae Flaviae para o Douro, e que em nossa opinião, nada tem que ver com a famosa estrada Bracara-Astorga.» Tal como tem sido observado por Pedro Soutinho no seu estudo e reconstituição cartográficas dos itinerários das principais vias romanas em Portugal, a verdade é que a “famosa estrada Bracara-Astorga”, a que se refere Veloso Martins, compreendia 4 itinerários distintos, designados por “itinerário(s) de Antonino”, 3 a saber: Por Ponte de Lima; “per loca marítima” (Litoral); pela Serra do Gerês (“Via nova”); por Aquae Flaviae (Chaves). E este último, designado por “itinerário XVII”, compunha-se, por sua vez, de variantes que dele derivavam ou confluíam e de outas vias transversais que com ele cruzavam. Ora, por Vilarandelo passava precisamente o itinerário principal da via XVII, que é designado por “itinerário de Chaves a Castro de Avelãs por Valpaços”, rumo a Astorga (ver MAPA). Mas porque também, segundo Pedro Soutinho, dele derivava, em Valpaços, rumo ao Sul, uma hipotética variante em direcção a Marialva, por Pocinho, Foz-Côa e Freixo de Numão, julgo radicar-se nesta situação o equívoco do autor da Monografia de Valpaços, tanto mais que que o itinerário Chaves - Vila Pouca de Aguiar - Rio Douro, também considerado por Soutinho, não passava junto a  Vilarandelo.

Variante do Itinerário XVII, Chaves – Valpaços – Castro de Avelãs,
 segundo Pedro Soutinho
clique sobre o mapa para aumentar

Podemos finalmente estabelecer assim, em conformidade com o mapa exposto e as pesquisas que estiveram na base da sua elaboração, um roteiro descritivo da referida via romana junto da qual se supõe que tenha florescido uma comunidade hispano-romana no espaço onde hoje se enconta a vila de Vilarandelo e dos principais vestígios que abonam em favor dessa realidade:


VILARANDELO NA VARIANTE DO ITINERÁRIO XVII - AQUAE FLAVIAE (CHAVES) A ASTURICA (ASTORGA), POR VALPAÇOS E CASTRO DE AVELÃS.

«Partindo da Madalena, Chaves, depois de atravessar o Tâmega, segue a direito pela EN103.
Na capela, continua em frente por terra; na bifurcação segue à direita para Quinta. de S. Germano; após o canal segue à esquerda e 50 metros depois, segue à direita onde passa a calçada que ascende ao Alto de S. Lourenço; segue para Eiras (miliário a Constancio I).

S. Lourenço (ver magnífico troço da Calçada de S. Lourenço subindo a encosta; miliário anepígrafo já desaparecido; o acesso à calçada faz-se no miradouro de S. Lourenço continuando depois pela Casa dos Ferradores, Largo do Cruzeiro, Rua da Travessa, até à EN213; ao chegar ao chafariz segue para Juncal). Ponte Romana de S. Lourenço sobre a ribeira de S. Julião (1 arco, a 500 m da povoação e segue para Arco e Lama).

S. Julião de Montenegro (na Igreja paroquial apareceram 4 miliários, miliário Macrino e miliário a Décio, este da milha VI, expostos dentro da igreja, um miliário anepígrafo no adro da igreja e ainda um fragmento na casa do Pe. Fernando Pereira em Vilar de Nantes; continua pelo Alto do Cavalinho, Falgueira, Poças, Alto da Giesta e Barracão)

, Ervões (apareceram 2 miliários nas obras de demolição da capela de Sta. Luzia; um miliário a Macrino que hoje está no terreiro da casa de Hermínio Quintino e outro nas fundações da mesma).

VILARANDELO (miliário a Macrino, apareceu na Capela do Espírito Santo dentro do cemitério e está hoje no jardim junto ao mercado com um outro miliário a Caracala que apareceu no pátio da casa de Francisco Coroado em Vilarandelo; um fragmento de miliário foi para o MRF [Museu Regional de Flaviense] em Chaves)»

Miliários a Macrino, à direita, e a Caracala, à esquerda, no Jardim do Toural, Vilarandelo
Foto da Junta de Freguesia de Vilarandelo

O miliário de Vilarandelo dedicado a Caracala foi datado por António Rodrigues Colmenero do ano 214 d. C. e dele existe uma interpretação (versão de Colmenero) publicada por Adérito Medeiros Freitas na Carta Arqueológica de Valpaços.
O miliário a Macrino foi datado de 217 d. C. pelo mesmo autor.
O fragmento de miliário que se encontra no MRF foi, segundo a mesma fonte, encontrado nas imediações de Vilarandelo e Colmenero admite duas datações possíveis, por tanto poder ter sido dedicado a Constatino I, como a seu filho Constantino o Grande, isto é entre 292 e 305 da potestade do primeiro ou a seguir a esta data.
Segue para Lagoas

«Lagoas (a calçada passa a Norte de Valpaços; miliários deslocados no Solar e Capela dos Morgados Pinto Leite, Casa do Arco).

Possacos (4 miliários; miliário a Magnêncio que apareceu junto à Igreja e hoje está numa casa particular em Carlão, Alijó; miliário a Flávio Dalmácio que apareceu nos alicerces de uma casa no Largo das Duas Fontes e hoje está no MNA [Museu Nacional de Arqueologia]; e mais 2 miliários referidos no CIL II [Corpus Inscriptionum latinarium II] entretanto já desaparecidos: miliário a Macrino? da Qta. do P. António de Sousa, CIL II  4790, miliário a Carino? da Qta. de Francisco da Costa Homem, CIL II 4792; a via desvia da EN206 à direita, pouco depois da povoação, e desce à ponte por 2 km).

Ponte Romana do Arquinho ou de Possacos sobre o rio Calvo (daqui provém o miliário a Maximino e Máximo, CIL II 4788, deslocado depois para a ponte de Vale de Telhas, acabando junto à capela de N. S. de Fátima em Vale de Telhas onde está hoje; indica reparações da via na frase “vias et pontes temporis vetustate conlapsos restituerunt curante”; referência a mais 2 miliários nas imediações, entretanto desaparecidos; depois da ponte, a via sobe até à EN206 e depois por caminho de terra até ao parque de campismo na margem do Rio Rabaçal).

Ponte Romano-Medieval de Vale de Telhas, sobre o rio Rabaçal (é uma construção medieval, mas que utiliza materiais romanos, como alguns silhares com marcas de fórfex, provenientes da anterior ponte romana que seria mais a jusante no lugar da Barca, onde havia um conjunto de pelo menos 5 miliários que foram deslocados ou estão desaparecidos: o miliário a Galério que está hoje no Museu de Vila Real, o miliário a Maximino Daia que está hoje na casa da família Verdelho em Vale de Gouvinhas, os 2 miliários que estão em Vale de Telhas descritos abaixo e um miliário a Numeriano entretanto desaparecido)

Pinetum, mansio4 a XX milhas de Chaves junto à travessia do Rio Rabaçal. A mansio poderia ser na área do parque de campismo atendendo aos vestígios aí existentes e o povoado de Pinetum poderia ser no Castro do Cabeço da Mochicara em Vale de Telhas. Os vários miliários que apareceram nas margens do rio e que iam sendo agrupados junto à ponte medieval reforçam que a milha 20 era vencida neste local.

Vale de Telhas (miliário a Constantino II junto à fonte romana proveniente da ponte e o miliário a Maximino e Máximo no adro da capela de N. S. de Fátima proveniente de Possacos; a via não passa na aldeia, mas na EN206)»

In Vias Romanas em Portugal, itinerários | http://viasromanas.planetaclix.pt/index.html


O itinerário prosseguia, já fora dos limites do concelho de Valpaços, por Bouça, Ferradosa, Lamalonga, até Castro de Avelãs e, daqui, em direcção a Bragança, penetrando em território espanhol através do Rio das Maçãs, entre Porto Calçado e Vale de Perdizes, até Astorga.

Notas:
1 Miliário (do latim “miliarium”, a parte de “milia passum”, mil passos), marcos colocados ao longo das vias do Império Romano em intervalos de cerca de 1480 metros (equivalentes a cada milha), com informações sobre os responsáveis pela construção e manutenção da via, muitas vezes dedicadas aos imperadores da época em que foram erigidos e tendo na base ou no final da inscrição a indicação da milha vencida na respectiva via.
2 Cividade (do latim “civitatem”, acusativo singular de “civitas”) muito usado na época romana geralmente associado a um determinativo para designar um aglomerado populacional de maior dimensão e importância do que outros como “castrum”, ”vici”, “castella” e “populi”.
3 O Itinerário de Antonino ou Itinerário Antonino (em latim: "Antonini Itinerarium") é um registo das estações e distâncias ao longo de várias das estradas do Império Romano, contendo direcções sobre como deslocar-se entre povoações, presumivelmente publicado pela primeira vez no início do século III, mas cujo autor está ainda por determinar. Dos 372 caminhos descritos, 34 pertenciam à Península Ibérica.
4 Mansio (do latim), local de estada curta, aquartelamento.

Bibliografia e outros recursos:
FREITAS, Adérito Medeiros, Concelho de Valpaços, CARTA ARQUEOLÓGICA, Julho de 2001, CMV, pp. 400-407.
MARTINS, A. Veloso, Valpaços, Monografia, Lello & Irmão, Porto, 2.ª ed., Dez. 1990, pp. 268-263.
PEDRO SOUTINHO, “Vias Romanas em Portugal, Itinerários de Antonino” e “Blogue das Vias Romanas em Portugal” |  http://viasromanas.planetaclix.pt | http://viasromanas.blog.pt |.
Outros recursos on line.

2 comentários:

  1. Caro Leonel Salvado,
    grato pelas info deste post. Vou colocar um link no meu blogue.
    Abraço

    ResponderEliminar
  2. Caro José Doutel Coroado,
    Devo confessar que quando decidi publicar este post, pensei que iria ser demasiadamente "morno" para os vilarandelenses que bons motivos têm para se orgulhar da sua História. Este seu comentário, a poucos minutos da publicação,afigura-se-me providencial e motivador para que o mantenha na calha de uma possível próxima publicação no "Arauto". Grato fico eu, e honrado me sinto, pela sua decisão em colocar um link no seu blogue, que muito aprecio e onde começo sempre por fazer regulares incursões em busca das melhores fotos para o que me ocorre escrever.
    Abraço,
    LS

    ResponderEliminar