domingo, 12 de fevereiro de 2012

Do saque de Napoleão ao acervo científico-naturalista português ao “Projecto de Coimbra”

VIAGENS CIENTÍFICAS: NA ROTA DOS NATURALISTAS
Por Ricardo Garcia

Relatos da altura dizem que o naturalista francês apareceu de surpresa no Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda, em Maio de 1808. Etienne Geoffroy Saint-Hilaire vinha com instruções precisas do ministro do Interior de Napoleão: deveria identificar, empacotar e despachar todos os espécimes de plantas, animais e minerais que "faziam falta" ao Museu de História Natural de Paris.

Meses depois, quando a primeira invasão francesa foi repelida pelos ingleses, Saint-Hilaire embarcava de volta a Paris com 1583 exemplares de animais, 69 amostras de minerais e fósseis, dez herbários com quase 2000 plantas de várias partes do mundo e um conjunto precioso de manuscritos. O episódio representou mais do que um saque - ou um "favor", como a historiografia francesa então o descreveu. O que enchia a bagagem de Saint-Hilaire era o registo de um dos mais emblemáticos capítulos da história da ciência em Portugal: as "viagens filosóficas" que quatro naturalistas formados pela Universidade de Coimbra fizeram, no final do século XVIII, às colónias ultramarinas, para estudar os seus recursos.
Alvo de inúmeros estudos historiográficos, estas viagens estarão agora no centro do primeiro de uma série de quatro documentários que a Universidade de Coimbra, juntamente com a produtora Terratreme, vai realizar até 2013, sobre as suas missões botânicas em África. Além das expedições do final do século XVIII, os documentários irão retratar outros três momentos em que a universidade esteve envolvida no avanço do conhecimento da flora em África.
Embora espaçadas no tempo, todas estas expedições têm um denominador comum: a aplicação da ciência na exploração racional dos recursos. E as "viagens filosóficas" do século XVIII - assim chamadas por referência à "filosofia natural", que englobava todas as ciências naturais - são apontadas como uma espécie de momento fundador. Patrocinadas pela Coroa, foram, nas palavras do historiador William J. Simon, "expressões práticas do Iluminismo". O marquês de Pombal criara o Real Colégio dos Nobres (1761) e trouxe para Portugal o professor italiano Domenico Vandelli. Criaram-se os jardins botânicos da Ajuda (1768) e de Coimbra (1772), fez-se a reforma da universidade (1772), surgiu a Academia de Ciências de Lisboa (1779).
Em Coimbra, Vandelli fez-se rodear de jovens estudantes brasileiros, que, uma vez formados, se transferiram para o Jardim Botânico da Ajuda. Antes mais voltado para o ensino e o lazer palaciano, a instituição tomou outro rumo. "O jardim passa a ser um grande complexo científico e museológico", afirma João Brigola, especialista em História da Museologia na Universidade de Évora.

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PROJECTO DE COIMBRA REVISITA ROTAS DOS NATURALISTAS EM ÁFRICA DESDE O SÉCULO XVIII

O botânico Jorge Paiva, 78 anos, professor e investigador reformado da Universidade de Coimbra, corre dez quilómetros todos os dias. A sua forma física vai ser necessária agora para uma nova tarefa: servir de guia em quatro documentários que serão produzidos até 2013, sobre as missões botânicas da universidade em África.

Para entender o que significam estas missões, basta olhar para o herbário da universidade. Ali estão hoje armazenados cerca de 700.000 exemplares de flora – a maior colecção do país e a segunda maior da Península Ibérica. Uma parte significativa resulta de sucessivas campanhas científicas para a recolha e o estudo de espécies vegetais em vários países africanos, que os documentários agora irão retratar.
Uma parte da história à volta destas campanhas estava de certa forma escondida do público em geral, em gabinetes e armários do antigo Departamento de Botânica. “Percebemos que havia uma riqueza documental enorme”, afirma Helena Freitas, directora do Jardim Botânico de Coimbra. Desde 2005, a documentação tem vindo a ser organizada e disponibilizada através de uma biblioteca digital.
A partir daí surgiu a ideia de mostrar, também numa série de documentários, a história das missões botânicas dos naturalistas de Coimbra. O projecto foi viabilizado por uma candidatura ao programa COMPETE do QREN, com um financiamento de cerca de 500 mil euros – 65% de Bruxelas e 35% do Estado, através do programa Ciência Viva.
As “viagens filosóficas” são o mote do primeiro documentário – uma espécie de enquadramento daquelas que foram as primeiras expedições de cunho estritamente científico, no século XVIII. Os outros serão filmados em três países diferentes – Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
Jorge Paiva irá conduzir as histórias, percorrendo parte dos trajectos que outros naturalistas de Coimbra fizeram no princípio do século – Júlio Henriques, em São Tomé, em 1903, e Luís Carrisso, nas décadas de 1920 e 1930. Paiva, ele próprio, participou de expedições a Moçambique, na década de 1960, que serão objecto de um dos documentários. “Estive lá oito meses, sempre a acampar, e fiz 33.000 quilómetros”, relembra. “Estive em zonas onde lá não voltou mais ninguém”, completa.
As filmagens começam em Setembro, em São Tomé, e os documentários deverão estar concluídos até ao final de 2013. Serão transmitidos pela RTP. “Pretendemos que não seja algo académico, mas alargado ao público”, explica o coordenador do projecto, António Gouveia, biólogo do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra.
O conteúdo científico será assegurado pela universidade, enquanto os documentários em si ficarão a cargo da produtora Terratreme, escolhida por concurso, entre oito concorrentes. Cinco realizadores diferentes estarão à frente dos filmes: Susana Nobre (“viagens filosóficas”); Luísa Homem e Tiago Hespanha (Moçambique); João Nicolau (S.Tomé e Príncipe); e André Godinho (Angola). “Não ser um mesmo realizador para toda a série traz mais riqueza ao projecto”, afirma o produtor João Matos, da Terratreme.
Os filmes procurarão complementar as informações sobre a flora e os ecossistemas com a sua interacção com as comunidades e as tradições locais. “São filmes de divulgação científica, mas há muitas formas de divulgar ciência”, diz João Matos.
O PÚBLICO vai acompanhar o projecto das missões botânicas em África com uma série de artigos de cunho histórico sobre as viagens – a primeira das quais está na edição deste sábado
do jornal –, com reportagens in loco das filmagens, na sua edição impressa, e com outros conteúdos editoriais na sua edição online.

A partir deste sábado, também está disponível no PÚBLICO online um blogue do projecto, da responsabilidade da Universidade de Coimbra.

 In jornal O Público, 11-02-2012 | http://www.publico.pt

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