terça-feira, 5 de outubro de 2010

Como era a vida em Portugal há 100 anos

Curiosa e original reportagem esta publicada no Jornal “O Sábado”, sobre o assunto em epígrafe, que o seu autor, Nuno Thiago Pinto, no-la presenteou, utilizando as regras ortográficas da época. Vale a pena lê-la!

Milhares de pessoas presenceavam o sorteio da Loteria do Natal, o Paiz só tinha seis cabines telephonicas e 3.211 automoveis e os toureiros eram as grandes estrellas. Saiba como se vivia em Portugal em 1910, n'um texto escripto com a orthographia da epocha.
Por Nuno Thiago Pinto

Na tarde de 23 de Dezembro de 1911, uma multidão ansiosa encheu a sala da Santa Casa da Misericordia de Lisboa para assistir à extracção da Loteria do Natal. Sentados em cadeiras collocadas em frente às duas enormes espheras de onde eram retirados os numeros vencedores, homens, mulheres e creanças esperavam pelo resultado do sorteio que lhes podia mudar a vida. Ao fundo da sala, muitos outros aguardavam de pé. A Illustração Portugueza de 1 de Janeiro 1912 descrevia que, na rua, a expectativa era ainda maior, com milhares de pessoas a occupar o Largo da Misericordia - algumas empoleiradas em arvores. Estava em jogo um primeiro premio de 240 contos de réis (cerca de 4,7 milhões de euros na moeda actual), guardados em maços de notas n'um cofre.
Era muito dinheiro para a epocha, pouco mais d'um anno após a queda da Monarchia e a proclamação da Republica. O Paiz era pobre: cerca de 75 por cento dos quasi seis milhões de habitantes dedicavam-se à agricultura e um trabalhador rural recebia em média 280 réis por dia (5,5 euros), que podiam chegar aos 500 (9.9 euros) na epocha das colheitas. Os operarios - 214 mil em 1907 - eram mais bem pagos: em Lisboa e no Porto, podiam ganhar entre 500 e 600 réis (11,9 euros)ao dia. As mulheres, por regra, recebiam metade do que era pago aos homens.

A ALIMENTAÇÃO ERA a principal despesa dos portuguezes: gastavam 60 por cento do salario em comida. Ainda assim, comia-se mal. Os pobres alimentavam-se à base de pão, hortaliças, legumes, fruta e vinho. Raramente compravam carne ou peixe e eram as mulheres que governavam a casa. Por outro lado, raramente faltava fruta.
Os burguezes e aristocratas também comiam mal. Mas muito e com pouca simplicidade. As refeições eram divididas em trez: as actuaes, mas com nomes differentes. Logo de manhã, tomavam o primeiro almoço. No XI volume da Nova Historia de Portugal, de A. H. Oliveira Marques e Joel Serrão, le-se que esta refeição era à base de café, chá, leite e chocolate, acompanhados de pão, manteiga, bolos sêccos, doces de fruta e fruta fresca, com refôrço, para muitas creanças e até adultos, de papas, òvos, açôrdas.
Ao meio dia tomavam o jantar: sopa, acepipes e dous ou trez pratos. E, entre as seis e as sete horas da tarde, a ceia, que podia chegar aos cinco pratos. Não havia a preoccupação de alternar peixe e carne à refeição. Grande parte das vezes, eram servidos varios pratos de carne. Preferiam vacca, carneiro e porco, emquanto os peixes predilectos eram o bacalhau e a pescada. As saladas frescas também rareavam. Em vez d'ellas, cozinhavam-se favas, ervilhas, feijões, brocolos e couves. A maioria deixava o cuidado das refeições a cargo das criadas, que compravam os alimentos no mercado semanal. Ahi, carros de pão, legumes, cereaes, fruta e gado conviviam com outros vendedores de botões, meias, fatos, copos, sapatos e alguidares. Mas fosse n'uma casa de ricos ou de pobres, o fogão estava acceso quasi todo o dia.
A alimentação da aristocracia e da burguezia incluia ainda compotas, pudins, bolachas, chocolate e bolos. A água era fervida para evitar a febre typhoide e o vinho a bebida mais consumida. Após a sopa era servido um vinho da Madeira sêcco, o peixe era acompanhado por um branco de Bucellas ou Collares e a carne por espumoso ou tinto do Ribatejo, Collares e Torres Vedras. Com os doces, bebiam um Porto ou Moscatel de Azeitão.
ALMOÇAR OU JANTAR fòra era um luxo. Além dos restaurantes, era hábito tomar as refeições em hotéis, conhecidos pelo cuidado na cozinha. Os cafés, cujos bifes começaram a ganhar fama, eram preferidos para jantares ou ceias ligeiras. Em 1908 havia em Lisboa 120 estabelecimentos onde se podia comer, a par de 60 hotéis e pensões. Uma refeição media de trez pratos custava cinco (9,9 euros) ou seis tostões (11,9 euros). Uma de cinco augmentava para seis ou sete tostões.
As casas ruraes tinham um ou dois andares e eram em geral mal divididas e pouco illuminadas - a azeite ou a oleo. Todas tinham uma cozinha que se tornava o sitio de convivio após as refeições e até à hora de deitar. Conversavam, liam em voz alta e jogavam cartas. A maioria das casas tinha outro compartimento onde a familia dormia. Só os mais ricos possuiam quarto, sala e cozinha.
Nas cidades, a organização era um pouco differente. No final do século XIX começaram a construir-se os primeiros predios, com andares para alugar. A burguezia instalou-se em apartamentos com entre seis a oito divisões, tectos altos e duas entradas: uma principal e outra de serviço. A casa era ligada por um corredor estreito e escuro que recebia luz de pequenas janellas que existiam sobre as portas das divisões. Apesar de as casas de banho começarem a apparecer nesta epocha, a esmagadora maioria das habitações não tinha retrete. Os portuguezes lavavam-se em lavatorios e bidets que tinham nos quartos. Só de vez em quando entravam num alguidar ou numa sêlha collocados nas cozinhas ou nas varandas. Especialmente no campo, tomar demasiados banhos ainda era considerado prejudicial à saude.
Apesar de a hygiene em geral não ser muita e os odores corporaes serem intensos, a Primeira Republica foi uma epocha de novos cuidados com a apparência. Mas só para quem tinha dinheiro. O cylindro do dr. Forest era indicado para tirar as rugas da velhice do rosto. Fabricantes de escovas electricas prometiam parar o embranquecimento do cabello. O médico-electricista dr. Scott garantia o rejuvenescimento e a vitalidade do corpo graças ao uso dos seus suspensorios electro-magneticos.
AS DAMAS DA sociedade portugueza pediam aos maridos o creme Sirene, que tirava as manchas da pelle. Muitas conseguiram o Royal Extirpador, "o melhor depilatorio e o unico reconhecido como decisivo exterminador dos cabellos que desfeam o rosto da mulher". E numa epocha em que ainda estava longe a moderna cirurgia esthetica, as Pilules Orientales prometiam desenvolver e endurecer os seios. Já a parisiense Margarette Mercier explicava como desenvolver o busto e augmental-o 15 centimetros em 30 dias: "Um methodo simples e facil que toda a mulher pode empregar em sua casa e que em muito pouco tempo lhe dará um busto formosissimo." Para receber as instrucções, bastava enviar um sêllo de 50 réis (0.9 euros) e esperar a resposta do correio. O annuncio era acompanhado por quatro gravuras que illustravam o crescimento do peito d'uma mulher.
Chamar o medico a casa era um privilegio das classes altas - e só nas grandes cidades. Em 1908, havia em Lisboa 471 medicos (um para cada 900 pessoas). No Porto, a taxa era um pouco melhor: um para cada 800 doentes. Já se usava o estethoscópio e o medidor de pressão arterial. No final da consulta, os doentes mandavam aviar a receita na pharmacia de confiança mais proxima e ficavam na cama à espera de melhoras. Ou da morte. Só se internava alguém em casos extremos de cirurgia. Porque o hospital servia, na maioria dos casos, as classes populares. E mesmo essas só quando não se conseguiam tratar em casa. Muitas vezes, chegavam tarde de mais.
No XI volume da Nova Historia de Portugal, explica-se que o rachytismo, a debilidade e a tuberculose se tratavam com vinho nutritivo de carne e farinha peitoral ferruginosa. As doenças venereas com o Depurativo Dias Amado. As doenças de pelle com pomadas, ungüentos e sabonetes. Ainda assim, eram estas as doenças a levar mais gente ao hospital - onde já se realizavam as grandes operações da então moderna cirurgia, com a ajuda da anesthesia por chlorofórmio. Em 1909 havia 241 hospitaes de todos os tipos e dimensões no Paiz. No anno seguinte, 79.657 portuguezes estiveram internados, numa população de 5,9 milhões. Os melhores dentistas também annunciavam operações sem dôr, com implantação de dentes artificiaes, coroas e dentaduras.
NA EPOCHA, era tolerada a freqüencia masculina de bordéis e em Lisboa havia quasi trez vezes mais prostitutas do que médicos: em 1900, existiam 1.197 registadas na cidade. Já no Porto, o número chegava a 438 e em Évora a 53. Os preços variavam entre o meio tostão (0,9 euros) e os 2$250 réis (44,6 euros) para as mais requintadas.
Apesar d'esta tolerancia social, a sexualidade era reprimida. As meninas sòmente aceitavam pedidos de namoro com o consentimento dos pais. As relações desenvolviam-se por carta, fallavam à janella ou em passeios vigiados.
Nas famílias burguezas e aristocratas, o homem só era autorizado a entrar em casa de uma menina após o noivado. Em media, os portuguezes casavam-se tarde: os homens aos 26 anos e as mulheres aos 24. A mentalidade profundamente catholica fez com que o divorcio, introduzido pela Primeira Republica, não se generalizasse.
A violação das regras de relacionamento entre homens e mulheres podia conduzir a agressões verbaes e physicas. Em casos extremos, restava o duello, que, apesar de condemnado, era tolerado nas classes superiores. Normalmente, eram combates de espada, mas havia muitos casos em que a arma de fogo era a preferida. Raramente morria alguém - apesar d'isso, os dias anteriores aos duellos incluiam cartas de despedida, redacção de novos testamentos e cenas de desespero entre familiares.
AS DIVERSÕES EM LISBOA estendiam-se aos 21 animatógraphos que existiam em 1910. Mas as grandes estrellas da epocha eram os toureiros e forcados, que eram idolatrados ao vivo e nas varias revistas da especialidade.
Na decada de 20, parte deste culto popular iria transferir-se para os grandes jogadores de foot-ball. O primeiro campeonato realizou-se em 1906 entre equipes de Lisboa e arredores. A União Portugueza de Foot-Ball só foi fundada em 1914.
A 20 de Janeiro de 1911 jogou-se pela primeira vez hockey no campo da Cruz Quebrada, entre uma equipe do Lisbon Cricket Club e outra do Carcavelos Club. A Associação Naval promovia torneios de natação com provas de 60, 200 e 400 metros. Em Paço d'Arcos organizavam-se festas desportivas com competições de salto em altura, vara, luta de tracção, corridas de resistencia e velocidade. A Praça do Saldanha servia de meta para a prova do Porto a Lisboa em bicycleta e motocycleta: os 360 kilometros eram percorridos em 16 horas na primeira e em sete na segunda.
Nos domingos de Verão, milhares de lisboetas sahiam da cidade e apanhavam o combòio para Cintra e Cascaes ou o barco para Cacilhas e Almada, onde familias inteiras percorriam as localidades carregadas de farneis à procura da melhor sombra. Em Lisboa, eram habituaes os passeios pela Avenida da Liberdadediz José Augusto França em Os anos Vinte em Portugal.
A moda da epocha vinha de França. Litteralmente. Todas as casas de moda tinham uma modista parisiense que criava, compunha e ajustava a toilette feminina para os bailes, visitas ou passeios. Esses vestidos, feitos por uma costureira portugueza em machinas de pedal, eram compostos por rendas, estofos e guarnições francezas. A Illustração Portugueza de 27 de Fevereiro de 1911 annunciava que, n'aquelle anno, a cor branca era a preferida. Aconselhava o uso de saia estreita e curta, que deixava liberdade de movimentos, com uma jaquette muito simples ou de bandas cruzadas.
O ESPARTILHO DE BARBAS de baleia era um elemento obrigatorio. Apesar de criticado por medicos, muitas mulheres usavam-no para retardar os damnos do tempo no corpo. Por cima, usavam um corpete. E por baixo das saias - uma ou mais - escondiam calças atadas no joelho. O conjunto custava, em 1910, no minimo 2$140 (42,4 euros). Um vestido variava entre os 13$000 (258 euros) e os 35$000 (694.8 euros). Com casacos, capas, chapeus, luvas, meias e sapatos, uma senhora da burguezia podia gastar 25$000 réis (496 euros) para se apresentar com dignidade.

O homem usava roupas mais simples: camisola interior de algodão ou lã, ceroulas ou cuecas, camisa, colete, calças e casaco de fato. O chapeu alto era escolhido para occasiões solemnes. No dia a dia preferiam-se os de côco ou molles. Com gravatas, laços, suspensórios, cintos e luvas, os homens podiam gastar entre 25$000 (496 euros) e 50$000 réis (992 euros). Barbeavam-se com laminas Gillette, tão commodas de usar que a publicidade mostrava um bébé com espuma na cara. Grande parte das compras eram feitas nos Armazéns Grandella, que em 1910 introduziram os primeiros ascensores em Portugal.
As deslocações eram raras. Grande parte da população passava a vida sem conhecer as principaes cidades do Paiz ou ver o mar. E aquelles que habitavam n'um centro urbano raramente conheciam outro. Em 1900 havia 2.380 kilometros de linhas ferreas no Paiz e a viagem de Lisboa ao Porto durava meio dia. Dez anos depois, tinham sido construidos 16 mil kilometros de estradas. E em 1916 circulavam apenas 3.211 automoveis e camiões - um por 1.692 habitantes. Ao mesmo tempo, existiam mais de 100 mil carroças, carros de bois, carruagens e diligencias. Em Lisboa, Porto, Coimbra e Braga o unico transporte collectivo era o carro electrico. Viajar para o estrangeiro estava fora de questão, excepto para politicos, diplomatas ou burguezes.
Mesmo as comunicações eram difficeis. No anno da proclamação da Republica, estavam installados 679 kilometros de rede telephonica. Havia 3.500 assinantes de telephone em Lisboa, 1.500 no Porto e menos de mil no resto do Paiz. A lista telephonica tinha 79 paginas com 45 nomes em cada uma. A maioria pertencia a casas commerciaes, empresas, repartições publicas e aristocratas. Só havia seis cabines telephonicas espalhadas por todo o Paiz. O preço difficultava a sua democratização: por cinco minutos de conversa pagava-se um tostão (1,9 euros) - dez vezes mais do que um jornal diario.
Por causa d'isso, os contactos eram feitos por carta: ao todo, eram enviados 100 milhões por anno, ao preço de 35 réis (0,7 euros) cada. Por isso, terá sido por telegramma que a Santa Casa da Misericordia informou a Casa Levy, da então designada Lourenço Marques, que o primeiro premio da Loteria do Natal de 1911 sahira ao numero 5119, vendido na colonia portugueza de Moçambique.

In http://www.sabado.pt, 05-10-2010
Imagem: Id.

2 comentários:

  1. Achamos tão interessante o vosso blogue que o lincámos a um nosso! Parabéns
    José Martins

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  2. José Martins:

    O nosso Bem-Haja pela mensagem de simpatia e informação de estamos "lincados". O problema é que não conseguimos descobrir a qual dos vossos blogues se refere, aliás, não nos é possível fazê-lo pela forma mais fácil. Clicando em "José Martins" aqui dá erro bx-tv8iP1.

    Em todo o caso, mais uma vez, Obrigado!

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