sábado, 5 de março de 2011

Idácio, bispo de Chaves, e os Suevos


A invasão de Chaves pelos Suevos, 26 de Julho de 460
Ilustração e montagem de Leonel Salvado | foto de base http://rosinhamia.blogspot.com

Idácio foi bispo de Aquae Flaviae (Chaves) entre 427 e cerca de 460, sendo o único bispo que se conhece da diocese atribuída a esta cidade, o que permite supor que a diocese flaviense não lhe terá sobrevivido, já que após este prelado não se encontram mais referências ao bispado flaviense, na área correspondente grosso modo à actual diocese de Vila Real, falando-se contudo num bispado posterior, o de Bética (Boticas?).
Idácio nasceu ao redor do ano de 395 em Xinzo de Límia uma povoação da moderna província de Ourense situada junto do rio Lima, cujo nome se pronuncia agora em castelhano Ginço de Limia . Xinzo de Límia era a civitas romana de Forum Limicorum sendo essa a razão por que também é conhecido por Idácio de Límica. Nasceu numa família culta e romanizada e viveu, portanto, numa época, como se sabe, bastante conturbada pela instabilidade do império romano, pela fome, pelas epidemias e pelo temor inspirado pelas sucessivas hordas de povos bárbaros, como os Suevos, um povo de origem germânica aparentado aos anglos e saxões que desde o século II vinham rondando as fronteiras império decadente e no início do século V irromperam por todo o nordeste peninsular, espalhando a morte e a destruição entre populações hispano-romanas até se estabelecerem na província da Galécia e fundarem aqui um reino com a capital em Bracara Augusta (Braga). Desde então a expansão do reino suevo foi entendido como uma urgente necessidade e levada a cabo através de incursões de destruição, pilhagens e morticínio.
A Crónica de Idácio (também conhecido por Cronicão) é a mais importante fonte historiográfica para se conhecer este período obscuro da história do Ocidente peninsular no século V (entre 369 e 469) e é através dela que conhecemos a acção dos suevos e, em parte também dos visigodos, neste território. É uma obra em que o autor adquire uma aceitável credibilidade por ter aproveitado fontes escritas, testemunhas idóneas, e sobretudo os seus próprios conhecimentos. Outra particularidade curiosa de Idácio é que foi o primeiro cronista a indicar os dias da semana pela nomenclatura cristã. Nos seus escritos Idácio mostra-se um católico atormentado por uma visão apocalíptica que o colapso do império e o terror dos bárbaros confirmavam as respectivas profecias. Assumiu assim a função de descrever o “fim dos tempos”, mas sem deixar de procurar a paz e combater as heresias ariana e prisciliana.

Em 410, o bispo Idácio descrevia assim, na crónica, a sua visão apocalíptica dos tempos dos primeiros suevos que entram na Hispânia:

“Os Bárbaros, que penetraram nas Espanhas, pilham e massacram sem piedade. Por sua vez, a peste não causa menos devastações. Enquanto as Espanhas estão entregues aos excessos dos Bárbaros, e o mal da peste não faz menos estragos, as riquezas e os víveres armazenados nas cidades são extorquidos pelo despótico colector de impostos e exauridos pelos soldados. E eis que a temível fome ataca: os humanos devoram a carne humana, sob a pressão da fome, e as próprias mães se alimentam do corpo dos filhos, por elas mortos e cozinhados. Os animais ferozes, habituados aos cadáveres das vítimas da espada, da fome ou da peste, matam também os homens mais fortes e, cheios dessa carne, desencadeiam por todo o lado o aniquilamento do género humano.”
As primeiras fricções entre os suevos pagãos e as comunidades hispano-romanas autóctones não diminuíram, o que levou o Idácio, em 431, a deslocar-se à Gália, à frente de uma embaixada hispano-romana para requerer do vencedor dos Hunos, o General Flávio Aécio, o mais poderoso chefe militar do já moribundo Império Romano do Ocidente, uma intervenção militar contra a Galécia sueva. Não obstante ter regressado à Galécia no ano seguinte na companhia do conde Censório com instruções para que este negociasse a paz, o atrevimento do prelado originou a pronta retaliação dos suevos e o recrudescimento das suas acostumadas investidas sobre as indefesas populações hispano-romanas por toda a parte da Galécia, incluindo as desta região transmontana.

Não obstante ainda o rei suevo Requiário ter adoptado em 449 o catolicismo, a crueldade deste povo bárbaro não diminuiu. A propósito das depredações de Requiário para além dos limites da Galécia, conta Idácio:

Mas depois da sua vinda o rei dos suevos, Rechiário com numerosa tropa dos seus invade as regiões da província Tarraconense, fazendo ali grande motim e levando-se abundantes cativos a Galaecia.”

É ainda pelo bispo de Chaves, que sabemos que a sua cidade, Aquae Flaviael foi invadida em 26 de Julho de 460 pelos suevos de Frumário, depois de assolarem toda a região, sendo ele próprio aprisionado na respectiva catedral, afastado da cidade e restituído à liberdade em Novembro seguinte para regressar a Chaves onde viveu até ao fim dos seus dias. Por essa altura travava-se no reino suevo uma acesa disputa pelo trono entre aquele Frumário (459 - 463) e Remismundo (459 – 469) e é de crer, tendo em conta a prisão de Idácio, que o prelado flaviense desempenhou um papel importante nessa disputa, a qual, afinal, terminou com a vitória de Remismundo e com a reunificação do Reino, em 463. Mas com a agravante de a Galécia sueva ter voltado ao Arianismo por influência dos aliados visigodos de Remismundo, mantendo-se por várias décadas o habitual clima de tensão e desespero vividos pela população rural. Só no ano de 550, no reinado de Carriarico (550 – 559), os suevos se reconverteriam ao catolicismo.
Desconhece-se a data exacta da morte de Idácio, mas sabe-se que ela terá ocorrido depois de 468, havendo quem indique a data de 470. Apesar da sua interpretação apocalíptica dos factos que narrou na crónica, ironicamente, Idácio dedicou a sua vida à pacificação da Galécia sueva e ao combate às heresias, tanto na sua diocese como em todo o território peninsular, sobretudo os priscilianistas, a quem ele designava de maniqueus, não se escusando de encetar contactos com outros importantes bispos da Hispânia, tais como Toríbio de Astorga e Antonino de Mérida e a solicitar ao papa São Leão Magno - Leão I (440 – 461) toda a ajuda e conselho possíveis para lidar com as heresias que se alastravam por toda a Península, no que foi atendido: O Pontífice logo encarregou o bispo de Astorga a promover um concílio nacional na Península Ibérica contra o priscilianismo ou, se tal não se afigurasse possível, uma reunião dos prelados da Província da Galécia com a cooperação do bispo Idácio.

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