terça-feira, 20 de julho de 2010

O Motim de Valpaços de 1862 e outros tumultos populares

Valpaços entre os mais graves motins antifiscais de 1862

Entre os meses de Abril e Agosto, o país foi abalado por uma vaga de agitação popular, de variável intensidade, que se transformou em focos de motins sob a forma de assaltos às dependências fiscais nas sedes concelhias, que fossem ao mesmo tempo as sedes de comarcas fiscais, atentados à vida dos respectivos funcionários, na maioria dos casos os escrivães da fazenda, e fogos postos. Tais focos localizaram-se em regiões tão distantes como o Minho (Guimarães, Póvoa do Lanhoso, Amares-Braga), as Beiras (Covilhã, Belmonte – Castelo Branco, Viseu, Aveiro) o Algarve (municípios da serra) e os Açores (Ponta Delgada, Faial-Horta) mas propagaram-se, também, a partir do Minho, a vários concelhos de Trás-os-Montes, tanto ao distrito de Bragança como ao de Vila Real. Aqui a situação foi bem marcante nas duas principais vilas, Chaves e Vila Real, como nos restantes municípios – Alijó, Montalegre, Murça, Boticas, Vila Pouca de Aguiar e Valpaços. Recordamos que Valpaços tinha sido elevada a categoria de vila havia pouco mais de um ano, por Dectreto de 27 de Março de 1861, sendo então presidente da Câmara o já biografado aqui no Clube de História, Júlio de Carvalhal (ver na categoria "Biografias" [local/regional], o artigo "Dois ilustres valpacenses, duas personalidades distintas").

Entendido, embora, como um sinal dos tempos, este ciclo de insurgências não deve ser considerado como um renascimento do movimento suficientemente estruturado e concertado com os sectores liberais que o apoiaram nas localidades assediadas e que ficou conhecido como o de “Maria da Fonte”, nem como um movimento de base partidária legitimista, ainda que nos relatórios de alguns governadores civis se acusem certos padres miguelistas de instigarem os tumultos. Parafraseando Diego Palácios Cerezales, que se baseia na contextualização europeia de Charles Tilly em «La France conteste», «estes motins englobam-se nos frequentes episódios de resistência popular à penetração impositiva e administrativa dos Estados e à criação de espaços económicos e políticos nacionais – duas características da transição do mundo moderno para o mundo contemporâneo. Como sublinha Palácios Cerezales, os próprios governadores civis que condenavam os clérigos miguelistas, deixaram nos seus relatórios notas claras do «carácter espontâneo dos motins e da inexistência de um plano de insurreição geral».
Então porque se insurgiam os populares? O móbil da insurreição residiu nas odiadas obrigações fiscais da nova contribuição predial que lesava os proprietários agrícolas, aos grandes nos seus interesses económicos, aos pequenos na sua dura luta pela sobrevivência. Os protestos contra os arrolamentos prediais e contra a não actualização das matrizes prediais continuaram repetidamente até aos finais do século XIX. Não admira pois, que na maioria dos casos os amotinados pedissem a morte do escrivão da Fazenda.

Em Valpaços, por exemplo, novos tumultos com os mesmos propósitos haveriam de ressurgir a 5 de Março de 1909, na sequência de iguais desacatos ocorridos em Alijó e na Régua durante o mês de Janeiro, em que um grande número de populares armados assaltaram a repartição e Recebedoria da Fazenda, queimando uma grande parte da documentação fiscal, à excepção dos livros de cobrança. Este episódio relatado por A. Veloso Martins na Monografia de Valpaços terá sido motivado, na opinião do próprio autor não a alegados nanejos políticos, nem à fome dos pobres populares, mas a uma «explosão de descontentamento de multidões enfurecidas, por serem sistematicamente enganadas e exploradas», de entre os quais, depois refere o mesmo autor, «dois "notáveis" [que] procuravam afanosamente no auto de fé do braseiro os tombos das suas contribuições prediais, chiscando-as para diante para que ardidos e tisnados ficassem». Joaquim de Castro Lopo, na sua monografia O Concelho de Valpaços, por Valbel (p. 101) assinalou ainda, de forma breve e inexplicada a existência de uns mais recentes «tumultos provocados por gente de Vilarandelo» a 28 de Fevereiro de 1925. Tanto este como o tumulto de 1909, ou ambos, podem tratar-se dos eventos que na memória colectiva teria gerado o misterioso epíteto Valpaços, concelho da foice - abordado num dos artigos publicado por Sérgio Morais no presente blogue e no “Notícias de Valpaços”, com uma alusão ao carácter enigmático desta expressão e a transcrição de um texto da autoria de Eduardo Ferreira Costa, editado no n.º 13 do Jornal Arauto da Casa do Povo de Vilarandelo, onde se procura esclarecer o seu real significado -, por ambos se ajustarem cronologicamente às referências publicadas por este autor e por se atribuír expressamente ao segundo à "gente de Vilarandelo".

Voltando ao tema central deste post que é o motim de 1862, torna-se necessário acrescentar que, dada a inexistência em Portugal de qualquer corpo policial antes de 1885 (data da criação de uma Guarda fiscal, mas ainda com competências estritamente aduaneiras e recaudatórias) e de 1912 (com a criação da Guarda Nacional Republicana, uma força policial de intervenção rural), as autoridades da administração civil, como os governadores civis tiveram que recorrer aos militares e entender-se com os correspondentes comandantes das divisões militares para responder às ameaças dos motim de 1862. Foi com estes meios (Cavalaria e Infantaria) que se restabeleceu a ordem pública, através da repressão activa, com maior ou menor violência, como aconteceu em Chaves, ou através da dissuasão preventiva, como aconteceu nos restantes concelhos sublevados do distrito de Vila Real.

Passo a transcrever um trecho do estudo que me serviu de base para estes tópicos, na expectativa de que possam interessar aos leitores do Clube de História, e especialmente aos valpacenses mais dedicados ao seu património histórico.

A PREVENÇÃO DO «CONTÁGIO»: VILA REAL
[…]
No dia 14 de Maio, dia de mercado em Chaves, a aglomeração de pessoas vindas das aldeias vizinhas transformou-se em tumulto: «Homens armados com paus e foices percorreram as ruas contestando o escrivão da Fazenda e os novos tributos.» Quando se dirigiam aos edifícios públicos, tropas da infantaria e cavalaria «carregaram contra o povo e puseram-no em debandada sem feridas graves». A acção militar não só satisfez o governo civil porque «o sossego fora restabelecido», mas também porque desmentiu o rumor de que as tropas se iriam juntar ao movimento popular e não disparariam contra os aldeões.

O governo civil manteve-se atento a tudo o que acontecia nos distintos municípios do distrito. Nos dias de mercado mensal promoveu o reforço dos piquetes militares, que chegaram até aos 50 homens em Alijó ou em Montalegre.

Em Murça foi necessário que outras 50 baionetas de um regimento de caçadores percorressem o termo municipal ao longo de três dias para «arrefecer os ânimos e evitar que os primeiros sintomas tumultuosos se transformassem em desordens».

Em Vila Pouca de Aguiar, as populações das aldeias reuniram-se ao toque dos sinos, mas, aparentemente, a presença das tropas dissuadiu-as de invadirem a sede do concelho. Em Boticas houve «ajuntamentos » populares e no dia 20 de Maio chegaram a reunir-se nas suas ruas 300 homens que, entre vivas ao rei e ao exército, pediam a morte do escrivão da Fazenda e gritavam contra os tributos e os novos pesos e medidas. As autoridades estavam prevenidas, e a presença de tropas facilitou a dispersão do grupo «apenas com a voz da autoridade».

Em Valpaços, «o tumulto foi mais grave». O mercado mensal tinha sido adiado para permitir a presença da tropa, mas os ânimos estavam exaltados. Os amotinados encararam-se com as tropas, a cavalaria teve de manobrar com as pistolas carregadas e a infantaria formou-se em posição de fogo. No final não houve intervenção armada, já que «a voz persuasiva da autoridade e o carácter imponente da força armada resolveram a questão sem derramamento de sangue». Mais tarde, um guardador de cabras foi detido, acusado de ser o principal instigador.

Apesar de as autoridades irem controlando a situação, não havia tropas suficientes para manterem a presença em todo o distrito, em especial tendo em conta que também eram necessárias em Bragança. A infantaria destacada em Valpaços devia regressar a Mirandela, e a cavalaria a Chaves, pelo que a prudência ditou que os vários escrivães da Fazenda fossem escoltados até Vila Real e levassem com eles a documentação fiscal, que ali ficou custodiada até o fim do desassossego.


CEREZALES, Diego Palácios, O princípio de autoridade e os motins antifiscais de 1862, Análise Social, vol. XLII (182), 2007, pp. 35-53.



Lamentavelmente, os efeitos materiais do carácter subversivo deste enérgico e incontido povo transmontano traduziu-se em muitos locais, como em Valpaços, na perda de importantes recursos documentais comprometendo seriamente o trabalho que vem sendo desenvolvido pelos historiadores como sucedeu com Joaquim Ribeiro Aires que, na cerimónia de apresentação da sua obra “A República no Distrito de Vila Real” realizada nos claustros do Governo Civil em 21 de Junho de 2010, deixou algumas observações bastantes claras das dificuldades sentidas na preparação da sua obra. Da entrevista concedida à jornalista do Notícias de Vila Real, Sandra Borges, transcrevemos o seguinte excerto:
«O autor explicou que o livro não dedica as suas páginas à história republicana por concelho e que todas as suas referências estão integradas no todo nacional e local. “Vila Real e Chaves eram os núcleos urbanos principais. Não por serem os maiores, o que também é uma razão, mas porque há pouca informação nos restantes”, contou. Ribeiro Aires revelou que “não existem actas camarárias na Régua, Santa Marta, Valpaços e Ribeira de Pena. Incêndios destruíram toda a documentação. Num destes casos foi um elemento da câmara que decidiu livrar-se das velharias e queimou todas as actas até 1976. Pasme-se!”»
Sandra Borges
In http://www.noticiasdevilareal.com/noticias/index.php?action=getDetalhe&id=830
(Publicadopor Sérgio Morais também no presente blogue)

Fontes:
CEREZALES, Diego Palácios, O princípio de autoridade e os motins antifiscais de 1862, Análise Social, vol. XLII (182), 2007, pp. 35-53. Disponível em formato PDF, em http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aso/n182/n182a02.pdf
MARTINS, A. Veloso, Monografia de Valpaços, 2ª Ed. da C.M. de Valpaços, 1999, pp. 77-82
Nota: O texto foi sujeito a alterações após a data de publicação assinalada em epígrafe.

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